domingo, 30 de agosto de 2015

"Submissão" - Michel Houellebecq

No dia 7 de janeiro desse ano, a redação do jornal francês “Charlie Hebdo” foi invadida por homens armados que assassinaram 12 pessoas e deixaram mais alguns com ferimentos. O atentado foi motivado por charges que faziam graça com Maomé, figura central do Islamismo, publicadas pelo jornal, conhecido pelo tom de sátira e humor com que permeia as páginas. A edição mais recente desse mesmo jornal trazia uma charge com a caricatura do escritor local Michel Houellebecq fazendo alusão ao lançamento do romance “Submissão” (“Soumission”, no original) naquela mesma época.

Ficou difícil então a partir deste acontecimento desassociar o livro do atentado, tanto por conta do conteúdo quanto pelo próprio autor, conhecido por suas polêmicas e pensamentos. Autor de obras como “Plataforma” e “O Mapa e o Território”, Houellebecq tem essa vertente como uma marca pessoal. O selo Alfaguara da Editora Objetiva publicou recentemente aqui no país esse romance, com 256 páginas e tradução de Rosa Freire d’Aguiar.

Ambientando em um futuro bastante próximo, o leitor é apresentado a uma França que nas eleições de 2022 fica sob o poder do fictício partido da Fraternidade Muçulmana, liderado pelo candidato Mohammed Ben Abbes, que une tanto direita quanto esquerda em um segundo turno que acaba com velhas tradições políticas do país. Os fatos são contados por François, professor universitário da Sorbonne, que há muito leva uma vida sem grandes emoções ou ambições e se considera um fracasso, por mais que goze de respeito dentro do círculo profissional.

Fascinado pelo escritor francês Joris-Karl Huysmans (1848-1907), o qual considera como um companheiro e um amigo fiel, e justifica muito das suas decisões e pensamentos, François de repente se vê no meio de uma mudança drástica de pensamento em seu país e de início não sabe bem como se portar, até mesmo pelo simples fato de que no âmbito pessoal as coisas não andam também lá as mil maravilhas. E mesmo que as mudanças já sejam oriundas de um processo em andamento, ele simplesmente não se dá conta disso.

Na primeira parte do romance o processo eleitoral toma conta com os acordos, negociatas, sujeiras, dissidências e controvérsias inerentes a esse tipo de processo. Há um interlúdio quando o personagem principal a fim de sair da confusão que toma conta do país (mas que não chega a ser tão grande como ele imaginava) sai em retiro para o interior, e, logo após isso, existe a segunda parte que finaliza o romance mostrando as alterações introduzidas pelo novo governo.

Em “Submissão” há muito com o que se revoltar, caso você tenha ideia de um mundo mais justo, unido e com maior aceitação, visto que as ideias expostas quase que em sua totalidade são um arcabouço de conservadorismo, xenofobia, machismo e misoginia. Todavia, há de se considerar que o tom utilizado regularmente é proposital e habilmente colocado pelo autor para essa condição de suscitar questionamentos, discussões e debates que circundam tanto questões comportamentais quanto religiosas.

Ao colocar nas entrelinhas de “Submissão” que a salvação do ocidente seria aceitar os termos do Islã, indo assim na direção inversa de preceitos e valores, Michel Houellebecq não só expõe várias feridas da atual realidade mundial, como instiga o leitor a pensar com mais afinco sobre aquilo que acabou de ler. É o tipo de livro que causa mais rebuliço não pelas qualidades literárias e sim pelas ideias expostas, sejam elas absurdas ou não, mas que cumprem com o objetivo de provocar e fazem da obra uma das melhores dos últimos anos.

Nota: 9,0

Leia gratuitamente um trecho do livro, aqui.

quinta-feira, 27 de agosto de 2015

Quadrinhos: "Homem-Formiga: Mundo Pequeno" e "Besouro Verde: Ano Um"

 

O Homem-Formiga nunca esteve no primeiro escalão de heróis da Marvel. Mesmo sendo fundador dos Vingadores sempre ficou como coadjuvante na maioria das histórias, nas sombras do cidadão por trás da máscara, o cientista Hank Pym. Com a chegada do (divertido) filme lançado esse ano sobre o personagem, a Marvel tenta jogar uma luz maior em torno dele, sendo que isso reflete aqui no Brasil também com alguns lançamentos, entre eles “Homem Formiga: Mundo Pequeno”, que dá uma boa visão geral sobre o herói. Três foram aqueles que vestiram o traje: Hank Pym no início, Scott Lang a partir do final dos anos 70 (é ele que aparece no longa envergando a roupa) e o degenerado Eric O’Grady de um tempinho para cá. Essa coletânea de histórias que a Panini Comics coloca no mercado traz em suas 146 páginas aventuras de todas essas fases. A melhor trama é a mais recente, no entanto, existem republicações de valor histórico como a primeira aparição do Homem-Formiga e a estreia da Vespa, parceira, namorada e esposa de Hank Pym. Apresenta também as tramas de 1979 onde Scott Lang inicia suas tarefas do lado dos mocinhos e não mais como bandido. Algumas dessas histórias ainda não tinham sido publicadas aqui no país, ou então, fazia muito tempo que isso havia acontecido. Tendo em vista entender melhor esse diminuto super-herói, “Homem-Formiga: Mundo Pequeno” serve bem, porém seu valor fica praticamente nisso, como introdução e valor histórico, não conseguindo ir muito além.

Nota: 6,0


Britt Reid é um jovem que depois do falecimento do pai assume como presidente do jornal da família. Inconformado com a situação da cidade dominada pela máfia e com um senso de justiça estourando no peito, coloca uma máscara no rosto, usa a fortuna para criar diversas geringonças e apetrechos e sai para as ruas combatendo o crime junto com um parceiro. Ok, a ideia não é das mais originais, porém foi assim que nasceu o Besouro Verde nas rádios dos anos 30. Nos anos 60 em um seriado de televisão que tinha Van Williams como o vigilante e Bruce Lee como Kato (parceiro e mordomo na luta contra o crime) é que o personagem ganhou uma dimensão maior, desaguando até nos cinemas em um longa razoável de 2011. Nos quadrinhos desde mais ou menos a época da criação, o Besouro Verde passou por inúmeros cancelamentos e reestreias, e nunca agradou por completo até que a Dynamite Entertainment conseguiu a franquia e convocou Matt Wagner (Sandman, Batman) para o roteiro e Aaron Campbell (O Sombra) para a arte. O resultado publicado lá fora entre abril de 2010 e março de 2011, ganhou este ano edição nacional pelas mãos da Mythos Books em mais um trabalho belíssimo da editora. “Besouro Verde: Ano Um” tem 304 páginas, capa dura e um trabalho gráfico repleto de cuidado. É narrado o começo da carreira, voltando para as raízes familiares, atravessando viagens de conhecimento pessoal e culminando na luta contra a máfia. É uma história de formação, com muitas cenas de ação, diálogos divertidos e uma mensagem crítica sempre planando ao fundo. Quem gosta de aventura com uma arte exuberante, enxertos de histórias policiais e aquela clima pulp no ar, esse encadernando é um prato muito bem servido.

Nota: 8,5


domingo, 2 de agosto de 2015

Quadrinhos: "Coffin Hill: Crimes e Bruxaria Vol. 1" e "Lições"


Desde os primórdios o terror teve lugar garantido dentro dos quadrinhos. Seja em histórias chinfrins e baratas, seja em outras mais elaboradas e significativas, sempre se fez presente. “Coffin Hill: Crimes e Bruxaria Vol. 1” que a Panini Comics coloca no mercado nacional é mais um título que faz essa tradição perdurar na nona arte. Esse volume compila as sete primeiras edições do título publicadas nos Estados Unidos pelo selo Vertigo entre dezembro de 2013 e junho de 2014. Com roteiro da escritora Caitlin Kittredge (da trilogia “O Código de Ferro”), arte de Inaki Miranda (“Fábulas”) e cores de Eva de La Cruz ambiciona honrar o gênero olhando para o passado de clássicas tramas, com um mal que espreita em uma floresta, mas que ninguém sabe exatamente do que se trata e de onde veio. A protagonista é Eve Coffin, descendente de uma antiga e rica família que tem no sangue a bruxaria. Tentando renegar isso em conjunto com um perverso acontecimento na adolescência, ela acaba se tornando policial e fica famosa ao prender um assassino serial. Logo após isso, porém, a personagem acaba saindo da polícia e retorna para a cidade natal no meio de uma bagunça que remete ao fato que a fez fugir quando jovem. Com roteiro bem construindo e mesclando passado e presente sem perder a atenção do leitor, “Coffin Hill” é uma boa história apesar da arte voltada mais para o público adolescente. Além disso, convenhamos que atualmente ter algo de terror que não envolva zumbis, vampiros ou lobisomens já se configura em relevante mérito.

Nota: 6,0


Em 2013 os irmãos Vitor e Lu Cafaggi encantaram milhares de leitores com “Laços”, releitura feita para Mônica, Cebolinha, Cascão e Magali, os clássicos personagens de Mauricio de Sousa, possível graças ao projeto “Graphic MSP”. O acerto foi tão grande que outra empreitada com a turminha logo foi prometida. “Lições” é essa sequência com lançamento agora pela Panini Comics com 82 páginas e duas opções disponíveis (capa cartonada ou dura), sendo o oitavo rebento oriundo da ideia de revitalização pretendida. “Lições” é um prolongamento lógico de “Laços”, onde a turminha está um pouquinho mais velha, um ano mais adiantada na escola, e, evidentemente, com uma nova gama de coisas e descobertas acontecendo ao seu redor. Os irmãos Cafaggi criaram de novo uma história comovente, que dessa vez não vem na embalagem de uma grande aventura com todos, mas na superação de obstáculos individuais, tendo como guia a forte amizade dos quatro. A trama é simples, porém funcional. Depois de uma travessura com um final não planejado os pais das crianças resolvem entrar na jogada e mudar a rotina deles para que aprendam com o episódio (daí vem o título). Com isso a garotada precisa sair dos costumes diários e encarar alguns desafios. A arte de “Lições”, assim como os personagens, também evolui e por si só já vale o trabalho. As feições, os olhares, a tristeza e alegria retratadas são de uma peculiar beleza. Em tempos de tanto cinismo e pouco afeto, essa nova releitura é um alívio singelo que faz cada um lembrar de uma época em que a vida era provavelmente mais amorosa e emocionante.

Nota: 8,5

Textos relacionados no blog:
- Quadrinhos: “Laços” – Vitor Cafaggi e Lu Cafaggi


sexta-feira, 31 de julho de 2015

Quadrinhos: "Justiceiro - Dispensado da Missão" e "Capitão Britânia"


"Justiceiro – Dispensado da Missão” reúne em 132 páginas as edições da revista “Thunderbolts” de número 27 a 32, publicadas nos Estados Unidos entre agosto e dezembro de 2014. Lançado recentemente pela Panini Comics essa compilação apresenta um Frank Castle (por incrível que pareça) não mais atuando como vingador solitário, e sim como parte do grupo governamental composto por criminosos em busca de redução de pena ou algum outro benefício (uma espécie de “Esquadrão Suicida” da Marvel). Na verdade, ele está de saída do grupo, pois logo no início se desentende com o Hulk Vermelho que é o chefe da operação. Essa retirada não é muito bem recebida e desencadeia várias ações e reações dos dois lados envolvidos. Dentro do elenco estão Elektra, Deadpool, Motoqueiro Fantasma, Líder e os Vingadores. Escrito pela dupla Ben Acker e Ben Blacker (de “The Thrilling Adventure Hour”) e com arte do mexicano Carlos Barberi (X-Men, Hulk) e do filipino Kim Jacinto (Hulk), essa história do Justiceiro mostra aquilo que os fãs tanto gostam: muita ação e o comportamento pessoal sempre problemático e sem muitas concessões. Honrando as tradições do personagem e até mesmo se dando ao luxo de inventar um contraponto amoroso com a Elektra que não prejudica a narrativa, pelo contrário, a amplifica ainda mais, esse lançamento é um bom investimento dentro da relação de custo e benefício, mesmo que seja mais indicado para leitores já conhecedores dos personagens envolvidos.

Nota: 6,5


O Capitão Britânia foi o primeiro personagem criado pela Marvel especialmente para o mercado inglês, estreando em outubro de 1976. Neste início, vários clichês adornavam suas histórias e não lhe levavam muito além de mero pastiche do Capitão América, com elenco de apoio baseado em outros heróis como o Homem-Aranha, apesar de origem diferente, escorada pela magia. Isso começou a mudar quando um ainda iniciante e desconhecido Alan Moore assumiu o título junto com outro talentoso artista inglês chamado Alan Davis. Em pouco mais de dois anos, a dupla revirou quase tudo e propôs ideias que tiveram muita influência dentro do universo da editora, como a criação de várias terras e de mundos paralelos e alternativos. A Panini Books reúne essa celebrada fase agora em um encadernado de nome “Capitão Britânia” com 244 páginas. Inicia na revista “Marvel Super Heroes” de setembro de 1981, ainda com Dave Thorpe nos roteiros, e vai até a “The Mighty World Marvel” de junho de 1984, com o final de uma grande trama que envolve Merlin, diversos personagens, vilões poderosos (e malucos) e alusões a vários pontos dos quadrinhos. Quem está acostumado ao Alan Moore de “Watchmen”, “V de Vingança” ou “Monstro do Pântano”, aqui tem a oportunidade de ler um de seus primeiros grandes trabalhos, e apreciar não só a capacidade narrativa para contar histórias quase improváveis, como também suas críticas políticas e sociais.

Nota: 8,5


quarta-feira, 22 de julho de 2015

Quadrinhos: "Homem-Aranha: 99 Problemas" e "Astro City"


Marvel Knights surgiu no final dos anos 90 como uma linha editorial para tratar os personagens da empresa de maneira mais adulta, com maior conteúdo de sexo, violência, drogas e outros temas mais “pesados” para edições normais. Bem sucedida no que tange a personagens como Justiceiro, Pantera Negra e Demolidor, essa linha se alastrou para diversos outros heróis da casa das ideias como o Homem-Aranha. A Panini Comics lança esse ano um encadernado de capa dura com as 5 primeiras edições de “Marvel Knights: Spider-Man” publicadas lá fora entre dezembro de 2013 a abril de 2014. “Homem-Aranha: 99 Problemas”, chega com 116 páginas e roteiro de Matt Kindt, ilustrações de Marco Rudy e cores de Val Staples. Nessa história, o nosso amado cabeça-de-teia se mete em uma confusão danada comandada pelo vilão Arcade, quando Peter Parker atrás de ganhar um extra (as coisas não estão fáceis) aceita um trabalho em uma mansão. Lá ele toma uma pílula que priva alguns poderes e o coloca no meio de uma pancadaria geral com seus maiores inimigos um atrás do outro e sem tempo para respirar. Esse arco inicial foi bastante elogiado lá fora, mas apesar do bom argumento, o roteiro é apenas razoável; se muito. No entanto, a arte do talentosíssimo Marco Rudy (Superman/Batman) eleva a história realmente a um patamar maior, repleta de experimentações, sem fórmulas e com muita lisergia embutida, o que faz de “99 Problemas”, uma história para ter em casa, ainda mais agora com tantas mudanças acontecendo na vida do amigão da vizinhança, representa uma trama para lembrar porque o personagem é tão querido.

Nota: 7,0


Em 1994, Kurt Busiek (roteiro) e Alex Ross (arte) lançavam “Marvels”, série que tinha como protagonista um homem comum chamado Phil Sheldon que desde os anos 30 presenciou o surgimento de seres com poderes quase divinos. Essa perspectiva pouco usual rendeu vários prêmios e serviu para alavancar mais a carreira da dupla. Em 1995, Kurt Busiek surgiu com uma série chamada “Astro City”, na qual ampliava os conceitos de “Marvels” e tinha mais espaço para expor dramas e dúvidas em meio a uma considerável quantidade de homenagem aos quadrinhos dos anos 30 a 70. De novo com o apoio de Alex Ross (dessa vez nas capas e concepção de personagens), porém agora com a arte de Brent Anderson (X-Men), a nova série também foi sucesso de crítica e rendeu mais prêmios aos autores. A Panini Comics através do selo Vertigo começou esse ano a publicar novamente no país esse trabalho. “Astro City Vol. 1 – Vida na Cidade Grande” reúne as edições originais de 1 a 6 lançadas originalmente entre agosto de 1995 e janeiro de 1996, com capa cartonada e diversos extras em 196 páginas. Neste arco inicial Kurt Busiek expõe uma cidade onde heróis, vilões e aliens vivem no meio de pessoas normais e assim como elas tem inúmeros problemas cotidianos banais. Essa perspectiva (por si só uma extensão de “Marvels”) também serve como crítica a sociedade no que tange ao tratamento a notáveis e a mídia e seus noticiários, o que faz dessa republicação de “Astro City” ainda relevante mesmo após duas décadas da concepção inicial.

Nota: 8,5


quinta-feira, 18 de junho de 2015

"A Cidade Murada" - Ryan Graudin

Durante muitos anos existiu em Hong Kong uma determinada região da cidade chamada de Kownloon, conhecida como “cidade murada”. Anteriormente fortaleza militar da China, essa região sofreu vários desagravos, passando inclusive pela invasão do Japão na Segunda Guerra Mundial, o que resultou posteriormente em descontroles como a verticalização demasiada das moradias e o aumento da população residindo em um espaço tão pequeno (chegou a ser de 33 mil habitantes). Em 1994 o setor enfim foi desocupado e demolido pelo governo e deu lugar a um parque no final do ano seguinte.

A escritora americana Ryan Graudin (da série “All That Glows”, inédita no país) utilizou a história dessa área para construir o livro “A Cidade Murada” (The Walled City, no original) publicado em 2014 lá fora e que a Companhia das Letras através do selo jovem Seguinte lança agora aqui no Brasil. Com 400 páginas e tradução de Guilherme Miranda a obra não é uma ficção histórica, mas se apropria bastante das peculiaridades do lugar, dominado desde sempre por máfias e enxertado de assassinos, ladrões e outros tipos de criminosos no meio dos moradores comuns.

Neste cenário desolador onde é recomendável não confiar em ninguém e andar sempre armado, a escritora insere o adolescente Jin Ling, que se vira como pode dentro das vielas escuras e becos estreitos, mas que na verdade esconde um grande segredo que é a razão de viver em Hak Nam (como é denominada Kownloon no livro). No mesmo lugar está Mei Yee, uma jovem que foi vendida pelos próprios pais em uma fazenda do interior para servir em um bordel dominado pela Irmandade, um grupo de criminosos liderados com mão de ferro pelo feroz Longwai.

Em conexão direta com a Irmandade está Dai, um misterioso garoto que reside em Hak Nam há quase dois anos também escondendo segredos (o que é uma constante na narrativa) e cheio de culpa dentro de si. Pouco a pouco esses três nomes vão se correlacionando até que esteja montada uma aventura de fuga e de resgate na qual a família e o passado coordenam as atividades de um lado, enquanto do outro estão interesses egoístas e o desapego contra a humanidade em prol da ganância e da ambição como prioridades.

E assim se configura a trama de “A Cidade Murada”, que exibe muitas obviedades e lugares comuns já amplamente utilizados, enquanto busca agradar ao público que se destina - o que provavelmente consegue com sucesso - por mais que seja difícil imaginar que convença um leitor mais experiente. Como destaque positivo está o fato da autora expor sem melindres o desespero a que a região sucumbe no que concerne a criminalidade, vícios, drogas, prostituição e violência, sendo essa a maior virtude da obra.

Nota: 6,0

Site da autora: http://www.ryangraudin.com

terça-feira, 9 de junho de 2015

"O Cão do Sul" - Charles Portis

O cidadão tem 26 anos e ainda está sem rumo na vida. Já se dedicou a diversas coisas, porém, nunca foi muito longe em nenhuma delas. Apesar de uma inteligência de bom nível, essa falta de empenho, sejamos honestos, não conta muito pontos. O que é pior, ele não está muito preocupado com isso, pelo contrário. Até o dia em que sua mulher resolve fugir com outro cara. Bom, aí a coisa muda de figura e se faz necessário mexer o corpo para recuperar o amor perdido (nem tanto) e principalmente o carro utilizado para a fuga (um amado Ford Torino) e os cartões de crédito.

O carinha descrito acima é Ray Midge, personagem principal de “O Cão do Sul” (The Dog of The South, no original), livro do escritor estadunidense Charles Portis, famoso por “Bravura Indômita” de 1968, que gerou duas excelentes adaptações cinematográficas (uma em 1969 com John Wayne no papel principal e outra em 2010 com Jeff Bridges nessa posição). Lançado nos Estados Unidos em 1979, só agora esse pequeno clássico cult, ganha edição nacional através do selo Alfaguara da Editora Objetiva com 264 páginas e tradução de Renato Marques.

“O Cão do Sul” tem na essência a perseguição do protagonista atrás da amada saindo de uma pequena cidade do Arkansas, passando pelo México e terminando em Belize. Durante os quilômetros percorridos, o autor insere uma vasta quantia de personagens desconexos e surreais, além de situações que flertam com o absurdo e com a loucura, envolvendo todos os fatos em uma fina camada de humor negro e acidez, não deixando de sacanear quase ninguém no livro, além de atiçar conceitos fechados da cultura americana.

O próprio Ray Midge é um herói improvável, pois por mais que sua causa seja justa (recuperar a mulher e o carro), seus atos nem sempre são. De tendência conservadora e expondo frequentemente opiniões racistas e xenofóbicas, mesmo que pareça fazer isso sem querer, contrapõe isso com uma bondade guardada ali no coração que vez ou outra aflora fazendo o tomar decisões de cunho caridoso, sem que ele também não entenda muito as razões que o levaram a fazer isso.

Na história criada por Charles Portis em “O Cão do Sul” os personagens, via de regra, ou estão buscando alguma coisa (sem saber muito bem o que) ou estão envolvidos em suas próprias maluquices (sem saber muito bem o que estão fazendo). Em resumo, todos estão perdidos na América do final dos anos 70, sem saber ao certo onde devem aplicar o tempo que lhes resta aqui no mundo. É usando isso que o autor cria um livro não só engraçado e satírico, como também um trabalho crítico de comportamentos sociais, com muito cinismo enxertado na mistura.

Nota: 7,5

A Editora Objetiva disponibilizou um trecho gratuitamente para leitura, aqui

segunda-feira, 25 de maio de 2015

"Funny Girl" - Nick Hornby

O escritor inglês Nick Hornby andava devendo, essa é a verdade. Seus últimos livros “Uma Longa Queda”, “Slam” e “Juliet, Nua e Crua”, mesmo não sendo obras ruins, pecavam por repetir fórmulas, emoldurar conceitos já utilizados e não apresentar o ritmo visto em trabalhos como “Febre de Bola”, “Alta Fidelidade” e “Um Grande Garoto”, por exemplo. É fato que o diretor vem se dedicando mais a atividade de roteirista de cinema com trabalhos como “Educação” de 2009 e “Livre” de 2014 no currículo, mas mesmo assim sempre se espera mais dele.

Entretanto, essa “dívida” acaba de ser paga em 2015 com “Funny Girl”. Com lançamento nacional no mesmo ano da edição estrangeira, chega pela Companhia das Letras com tradução de Christian Schwartz e 424 páginas. Nele, o autor invade a Inglaterra dos anos 60, com seus costumes próprios sendo confrontados com toda a mudança promovida pela produção cultural da época. O foco é a televisão, mais precisamente uma série cômica estrelada por uma bela e curvilínea garota vinda do interior para Londres, mais precisamente de Blackpool onde acaba de rejeitar um título de Miss.

O sonho dessa garota chamada Barbara Parker é ser atriz como a fonte de inspiração e de carreira a ser seguida da norte-americana Lucille Ball que por muitos anos encabeçou “I Love Lucy”, e foi considerada a Rainha da Comédia. Essa é apenas uma das diversas referências reais que Hornby apropria no decorrer das páginas. Elas aparecem em todo lugar, passando pelo título (um filme homônimo do diretor William Wyler de 1968), avançando por escritores, diretores e produtores do período e culminando em todo um processo de lugares e programas televisivos.

“Funny Girl” é na sua essência uma comédia. Uma eficiente e competente comédia, diga-se, que cumpre com o objetivo de divertir e fazer o leitor relaxar. Porém, é mais do que isso. Em volta da busca pelo estrelato (e depois pela manutenção dele), o autor ataca outras frentes como a questão da independência feminina (estamos nos anos 60, lembre-se disso), o machismo da mídia e da sociedade como um todo, relações sexuais, a dificuldade de criação de um produto que seja comercial, mas não banal, assim como o trato das “celebridades” e adequação disso na vida pessoal.

Mesclando os capítulos com fotos da época, o autor faz em “Funny Girl” o melhor trabalho em anos. Da sua maneira e a seu modo, faz confrontos constantes e estipula discretamente correlações nas páginas como o de entretenimento versus intelectualidade, e o de sucesso versus esquecimento, por exemplo, além de terminar tudo isso com um final simples, poderoso e bem emocionante. É muito bom ter de volta um Nick Hornby em plena forma nas prateleiras. Que continue assim daqui em diante.

Nota: 9,0

A Companhia das Letras disponibiliza gratuitamente um trecho para leitura, aqui.

Textos relacionados no blog:

- Literatura: “Febre de Bola” – Nick Hornby
- Literatura: “Uma Longa Queda” – Nick Hornby
- Literatura: “Slam” – Nick Hornby
- Literatura: “Juliet, Nua e Crua” – Nick Hornby

quinta-feira, 16 de abril de 2015

Literatura: Dead Kennedys e Ramones

“Dead Kennedys - Fresh Fruit For Rotting Vegetables (os primeiros anos)” já escancara logo no título as intenções. Escrito pelo jornalista Alex Ogg e com tradução de Alexandre Saldanha tem 240 páginas e lançamento nacional no ano passado pela Edições Ideal (que faz um ótimo trabalho no mercado editorial brasileiro com publicações relacionadas a música). No livro é apresentado o início da carreira de uma das bandas mais poderosas do punk. Desde a formação as páginas avançam até pouco tempo depois do lançamento de estreia em 1980 (que empresta o nome ao título), antes da separação em 1986 (esqueça a banda depois disso nas novas formações) e de todos os problemas que levaram a crise, principalmente a briga por direitos autorais e méritos de criação entre o vocalista Jello Biafra, o guitarrista East Baty Ray e o baixista Klaus Flouride. O álbum que trouxe canções do porte de “Kill The Poor”, “California Über Alles”, “In The Head” e “Holiday in Cambodia”, evidentemente é o foco mostrando tanto fatos sobre a elaboração e gravação, como também indo além para narrar todo o rebuliço e importância da obra. O livro conta com várias fotos do acervo do guitarrista e de ilustrações de Winston Smith, que entrecortam o texto de Alex Ogg baseado nas entrevistas que fez com os integrantes do grupo. Leitura completamente indicada para fãs do disco e da música possante contida nele.

Nota: 7,0

P.S: A editora disponibiliza algumas páginas para leitura gratuita, aqui.

“Na Estrada com os Ramones” foi lançado originalmente em 2003 lá fora. Escrito pelo gerente de turnê da banda, Monte A. Melnick, em parceria com o jornalista Frank Meyer ganhou edição nacional em 2013 através da Edições Ideal (sempre ela) com tradução de Alexandre Saldanha e 264 páginas de muita informação. Informação não muito nova para quem leu alguma das autobiografias de integrantes do grupo ou de outras diversas relacionadas ao quarteto mais famoso do punk rock, é verdade, mas ainda assim bem prazerosa. Até porque apresenta uma visão um pouco diferente, pois é vista mais de fora por alguém que estava lá desde o início e se fez presente nos 2.263 shows feitos (todos relacionados em um índice no livro) entre 30 de março de 1974 e 6 de agosto de 1996, quando as atividades musicais foram encerradas, enquanto o mito só faz aumentar cada vez mais. Das gravações primordiais até o fatídico e anunciado final, o leitor pode conhecer um pouco mais sobre a dificuldade de convívio entre os integrantes, a constante briga por domínio territorial, o uso demasiado de drogas e álcool e o profissionalismo absurdo com que tudo foi tocado apesar de todas essas questões, o que chega a impressionar. Leitura plenamente válida. 

Nota: 7,0

P.S: A editora disponibiliza algumas páginas para leitura gratuita, aqui.

terça-feira, 7 de abril de 2015

" A Hora dos Ruminantes" - José J. Veiga

É um dia como qualquer outro. Os afazeres são feitos calmamente com dedicação e parcimônia. Tudo parece igual como sempre foi em uma pacata vila interiorana dos anos 60. Ao longe ouvem-se cantos de pássaros e ruídos de animais. Até que ao acordar no dia seguinte os habitantes enxergam um acampamento cheio e organizado no outro lado do rio, conectado por uma pequena ponte. De súbito, a rotina vai para o espaço, pois a curiosidade toma conta de todos que procuram saber quem se aventura por terras tão remotas e quais são seus objetivos.

“A Hora dos Ruminantes”, livro escrito pelo goiano radicado no Rio de Janeiro José J. Veiga e publicado pela primeira vez em 1966 tem como ponto de partida o descrito no parágrafo anterior. É o segundo livro do autor e sucede “Os Cavalinhos de Platipanto” de 1959 com seus 12 contos que fazem intersecção entre sonho e realidade. Os dois livros estão sendo republicados esse ano pela Companhia das Letras em comemoração ao centenário de nascimento do autor (que faleceu em 1999) e os demais trabalhos concebidos por ele também estão programados para sair.

Essa nova edição de “A Hora dos Ruminantes” ganha um bocado de capricho com direito a prefácio detalhado, índice de obras relacionadas e capa dura. Com 152 páginas demonstra ao novo leitor o realismo fantástico de José J. Veiga que ganha paralelo na obra de autores sul-americanos como Gabriel Garcia Márquez, Julio Cortázar, Arturo Uslar Pietri e Murilo Rubião. É um texto onde as alegorias e metáforas tomam conta do cenário, mas sem deixar de lado a parte coloquial da fala dos habitantes e, por conseguinte, a montagem de um retrato do interior do Brasil.

O livro é dividido em três partes: “A Chegada”, “O Dia dos Cachorros” e “O Dia dos Bois”. Na primeira, como já retratado acima, a vila de Manarairema se depara com estranhos que chegam do nada e não se apresentam nem para conversar. O estranhamento inicial faz contrapartida com o medo que o ser humano tem da mudança, da alteração da rotina, do novo. Mas ainda mais fundo está a analogia e a relação com a ditadura militar em voga no país na época, podendo partir do pressuposto que os novos moradores do local são “gente do governo”, como diz o texto.

Com o medo se espalhando entre os simples moradores que passam a sofrer pequenas, mas frequentes coerções, a vila de Manarairema sofre drásticos ajustes. Isso só piora quando cães tomam de assalto o local obrigando todos a ficarem ressabiados e com pânico do que poderá vir, ou depois quando são bois que adentram esse espaço e não permitem nem que se saia de casa, precisando ser inventando todo um novo meio de comunicação para que a cidade sobreviva em meio a esses acontecimentos estranhos e tão sem sentido para o povo da vila.

No meio dos diálogos José J. Veiga insere bom humor ao lado do espanto, com a inserção de diversos ditados populares, mas também é no meio desses diálogos que amplifica as imagens alegóricas que fazem menção a verdadeira invasão que tomou conta do país naqueles tempos. Por outro lado, “A Hora dos Ruminantes” é um livro tão bem construído que funciona até se o leitor relevar isso e considerar as situações somente pelo viés da estranheza e da opressão que os habitantes de Manarairema se encontram adicionados. São essas possibilidades que constroem o maior mérito da obra.

Nota: 9,0

A Companhia das Letras disponibiliza gratuitamente um trecho para leitura, aqui.

Assista um vídeo com Antonio Arnoni Prado (responsável pelo prefácio do livro) falando mais sobre a obra do autor: