domingo, 24 de junho de 2018

Quadrinhos: "Ragemoor", "Bipolar - Volume 1" - "Os Flintstones - Volumes 1 e 2"


Um castelo antigo, enfiado no meio do nada, repleto de estranhezas e que esconde muito mais do que se pode imaginar. Uma construção que se contorce, se contrai e se expande ao próprio gosto e necessidade tanto para afastar visitantes indesejados e se proteger quanto para confinar uma família entre as paredes por várias gerações. Herbert é o mais novo integrante dessa família quando recebe a visita de um tio e uma prima cheios de segundas intenções. Morando apenas com o mordomo e o pai completamente ensandecido, além de uns serviçais bem peculiares, o anfitrião vê as coisas literalmente desmoronarem na noite que se segue a essa visita. Essa é a história básica de “Ragemoor”, publicação desse ano da editora Mino com capa dura, 122 páginas, formato 16,8x25,9cm em preto e branco e contendo vários extras. Com roteiro de Jan Strnad e arte do mestre Richard Corben (de “Espíritos dos Mortos” lançado aqui no ano passado) a obra traz um horror à moda antiga, com monstros, castelos e entidades misteriosas envolvidas em um pano de fundo de provação, superação, loucura e romance. Um tipo de terror que foge um pouco dos lançamentos mais comuns do estilo atualmente e por conta disso agrada bem.

Nota: 7,0


Estamos no futuro. Uns 40 anos antes o mundo se partiu após um conflito mundial de enormes proporções onde pouco mais de 20% da população sobreviveu. As antigas nações acabaram e se fundiram em apenas dois lados: a União Ocidental e o Governo Popular Oriental. Ocidente contra Oriente. Esse é o cenário de “Bipolar - Volume 1”, primeira metade da história concebida por Renan Rivero com arte de Diogo Torres e capa de Ramon Saroldi. Com 84 páginas, em preto e branco, e produção independente alcançada através de financiamento coletivo, é ficção científica das boas, bem articulada e construída, em um leve nível acima da média da produção nacional. Nesse panorama todo está Charlie, uma jovem criptóloga que serve as forças ocidentais, mas além dos propósitos implícitos da sua atividade, busca saber mais sobre o pai que morreu misteriosamente quando ela era criança. Quando aparece um estranho e misterioso objeto com propriedades e fabricação oculta, ela tem a possibilidade de atingir os dois objetivos. Usando de maneira habilidosa diversas influências do universo da ficção científica futurista (o clássico “Neuromancer” de William Gibson é bem presente, por exemplo), “Bipolar” é uma hq que merece muito sair em uma edição que atinja um alcance maior.

Nota: 8,0


A série animada “Os Flintstones” criada nos anos 60 nos EUA teve mais de 160 episódios e se tornou sucesso em vários outros países. Obra da lendária dupla William Hanna e Joseph Barbera, também cativou milhares de crianças e jovens no Brasil. A DC Comics que possui os direitos sobre os personagens os reimaginou em quadrinhos em 12 edições que saíram originalmente entre setembro de 2016 e agosto de 2017 e que a Panini Books lançou aqui em dois volumes publicados no ano passado e agora em 2018, com capa cartonada e alguns extras. Vivendo na idade da pedra na cidade de Bedrock, mas com tecnologias que remetem diretamente a nossa época que são construídas ou por animais ou por estranhas geringonças, Fred Flintstone, sua esposa Wilma e a filha Pedrita vivem em harmonia com os vizinhos e demais habitantes da cidade. Em cima desse cotidiano é que o roteiro de Mark Russell se expande e atravessa de modo satírico e mordaz temas como trabalho, religião, costumes, guerras, política e relações pessoais. A arte de Steve Pugh com as cores de Chris Chuckry são mais que eficientes para amplificar essa pegada inserido um humor visual no meio dos absurdos e críticas afiadas da história.

Nota: 9,0



segunda-feira, 18 de junho de 2018

Quadrinhos: "Deuses Americanos - Sombras", "Cadafalso" e "Jeremias - Pele"


“Deuses Americanos” é provavelmente o melhor livro de Neil Gaiman. Entre tantos que o consagrado autor já fez é o que mais se destaca. Lançado originalmente em 2001, ganhou uma excelente adaptação em formato de série televisiva (está disponível na Amazon Prime Video) e agora também se aventurou para os quadrinhos, seara que Gaiman domina como poucos e concebeu obras-primas. Publicada originalmente nos EUA pela Dark Horse, a Intrínseca lançou recentemente aqui o primeiro dos três volumes previstos chamado “Sombras”. Com 264 páginas em formato 17x26cm, a obra tem tradução de Fernando Scheibe e Leonardo Alves e apresenta diversos extras como esboços e capas alternativas que dão um plus e tanto. A adaptação ficou sob a responsabilidade de P. Craig Russell (Doutor Estranho) e Scott Hampton (Sandman) que nesse primeiro arco trazem Shadow Moon saindo da prisão e tendo que lidar com a morte da esposa e o encontro com o misterioso Wednesday que o insere em uma misteriosa guerra travada entre os deuses antigos das mitologias de cada país que chegaram aos EUA através dos imigrantes e os novos deuses dos dias atuais (como internet, mídia, etc.). Com algumas mudanças sutis no texto e na formatação, essa nova investida fica bem abaixo do esperado para quem já conhece a obra (seja do livro ou série), devendo funcionar melhor para os neófitos.

Nota: 6,0



“Composto no ano de 2017, durante a longa noite que se abateu sobre o país, período de vigência do golpe de agosto de 2016. Ainda que não verse sobre ele, sua sombra pode ser notada em todo o canto”. É o que escreve Alcimar Frazão no final do novo trabalho “Cadafalso” e realmente percebemos que essa sombra permeia tudo. Com 128 páginas, formato grande (21x27cm) e uma edição caprichada da editora Mino, o quadrinista viaja por Florença, Barcelona, São Paulo e Porto Alegre em anos e épocas distintas em contos que tratam da vida, do existir e dos absurdos que circundam isso. A arte em preto e branco alcança níveis ainda mais elevados do que em “O Diabo e Eu”, obra anterior do autor, e os contos trazem parcerias com nomes como Lourenço Mutarelli, Magno Costa e Dalton Cara. Do artista renascentista obcecado com a própria arte e religião, passando pelo motoboy que corre sem parar pela capital paulista, temos histórias que não são fáceis, carregam um cunho existencial, às vezes com poucas palavras e em outras usando projeções mentais, mas sempre com o impacto poderoso da arte. A história final que traz um velho recluso, cheio de delírios de grandeza e paranoia carregando dentro de si um moralismo demasiado e nocivo é a cereja do bolo de um álbum pesado e vigoroso.

Nota: 8,5


Jeremias é um raro personagem negro dentro do mundo concebido por Mauricio de Sousa. Estreou em 1960 e desde então tem sido mero coadjuvante nas histórias da turminha, encabeçando poucas aventuras solo nesses anos. Isso muda com “Jeremias - Pele”, mais um trabalho dentro do projeto Graphic MSP (o 18º) desta vez comandado por Rafael Calça e Jefferson Costa, e, talvez, o mais importante até agora. Com 98 páginas e publicação pela Panini Comics, os autores apresentam o protagonista no convívio com a família e na sua escola, onde depois de um dever sobre profissões encaminhado de maneira desastrosa pela professora, começa a sofrer preconceito mais severamente, por mais que este sempre estivesse presente ao redor. O texto insere situações cotidianas que os autores já passaram ou presenciaram na escola, no trabalho, na esquina, na rua. Situações que também vimos quando crianças - em maior ou menor escala - e temos a missão de não deixar que essas atitudes sejam feitas pelos nossos filhos, irmãos e sobrinhos. É por isso que “Jeremias - Pele” é tão importante. Mesmo que fale sobre racismo ainda sem toda a intensidade desejada, pelo alcance que tem poderá entrar na vida de milhares de jovens no momento certo, antes que o preconceito chegue e fique enraizado para o resto da vida.

Nota: 9,5



terça-feira, 5 de junho de 2018

Literatura: "Hippie", "Os Beneditinos" e "Fechado Por Motivo de Futebol"


Paulo Coelho chegou ao vigésimo livro. Chama-se “Hippie” o novo rebento de 288 páginas e lançamento pela Paralela, selo da Companhia das Letras. Dois anos depois de lançar “A Espiã” ele agora mergulha nas lembranças da juventude no final dos anos 60 e início dos anos 70 onde tateava ainda sem muita convicção o seu futuro. Extremamente autobiográfico, o livro foi escrito em terceira pessoa, permitindo assim que os demais personagens tivessem maior destaque. Paulo é um jovem que viaja junto com a namorada mais velha pela América do Sul, até que uma prisão na cidade de Ponta Grossa no Paraná em 1968 em plena ditadura faz com que esse amor termine. Do outro lado já encontramos Paulo em 1970 chegando a Amsterdã com algumas expectativas na mochila e a cabeça aberta para novas experiências. Quando Karla, uma holandesa forte e bela surge no seu caminho, embarcam em um ônibus intitulado Magic Bus com destino ao Nepal. Nessa aventura pelo desconhecido temos um romance de descoberta, de pessoas querendo achar o lugar no mundo. Ao deixar um pouco de lado toda a espiritualidade e os chavões que tanto gosta de usar (ainda que eles apareçam em boa dose), Paulo Coelho faz em “Hippie” um de seus melhores trabalhos em muito tempo.

Nota: 6,0

Leia um trecho aqui: https://www.companhiadasletras.com.br/trechos/88283.pdf 





O que fazer quando o emprego vai embora, a vida já não oferece grandes atrativos no pequeno apartamento em que se mora sozinho e para completar a saúde já não anda lá essas coisas e requer privações e cuidados mil? Bom, para o narrador de “Os Beneditinos” a saída é reunir os velhos amigos do tempo de colégio primário e propor a eles uma última aventura em Londres para disputar o primeiro campeonato de Walking Football, um jogo feito para veteranos onde não é permitido correr, somente andar com a bola nos pés. Nas 152 páginas do romance publicado recentemente pelo selo Alfaguara da Companhia das Letras, o jornalista carioca José Trajano finaliza uma espécie de trilogia involuntária composta antes por “Procurando Mônica” de 2014 e “Tijucamérica” de 2015. Assim como eles, “Os Beneditinos” carrega em si vários pontos autobiográficos de um autor que durante muito tempo foi odiado e amado nas mesas de debate esportivo e no comando nacional de um grande canal de esportes. De opinião forte, às vezes até mesmo irascível, mas inteligente e bem-humorado, Trajano versa belamente no novo trabalho sobre o envelhecer e as boas lembranças que guardamos dentro do peito, ao mesmo tempo em que cutuca levemente os tempos sombrios em que vivemos.

Nota: 7,0




O escritor uruguaio Eduardo Galeano (de “As Veias Abertas da América Latina”) sempre foi um apaixonado por futebol. Falecido em 2015 costumava pregar um aviso na porta de casa em época de Copa do Mundo que dizia “cerrado por fútbol”. Nada mais direto e claro. A paixão era tanta que escreveu “Futebol ao Sol e à Sombra” onde se debruçava magistralmente sobre o esporte fazendo as correlações que lhe eram possíveis. Em 2018 a L&PM Editores publica aqui no Brasil nas vésperas de mais uma Copa do Mundo, “Fechado Por Motivo de Futebol”, coletânea com textos que não entraram no livro anterior e saíram em jornais, revistas e livros, compilando até mesmo coisas inéditas. O escritor que como tantos outros queria ser jogador de futebol, mas como ele mesmo afirmava só conseguia fazer isso dignamente nos sonhos, usou as mãos e a mente para produzir a arte que os pés não permitiram. Em um livro extremamente aprazível, Galeano conta saborosos casos sempre margeando os mesmos com política e história, o que faz com que pequenos textos de uma página apenas, por exemplo, se tornem ainda mais. Passando da seleção uruguaia pelos craques que admirava como Pelé, Maradona e Zidane até desconhecidos brilhantes, “Fechado Por Motivo de Futebol” é leitura mais que recomendável.

Nota: 8,5

segunda-feira, 4 de junho de 2018

Quadrinhos: "Uma Dobra no Tempo", "Salto" e "Open Bar - Edição Definitiva"


Escrito por Madeleine L’Engle em 1962, “Uma Dobra no Tempo” abocanhou prêmios na época e se manteve relevante depois. A história juvenil de ficção científica e fantasia se estendeu por mais volumes e invadiu outras áreas como o cinema (em uma produção bem sem graça comandada pela Disney lançada este ano). Os quadrinhos também tiveram sua versão pelas mãos da Hope Larson (de “Batgirl”) que em 2012 adaptou a obra nos EUA. Essa adaptação ganha edição nacional agora em 2018 pela Darkside Books com o habitual capricho que a editora tem com seus produtos. Com 394 páginas, capa dura e tradução de Érico Assis é uma edição belíssima. Nela, Meg é uma adolescente com problemas típicos dessa idade e não consegue transitar bem entre aqueles ditos “normais”. Junto com Charles - o sagaz irmão mais novo - embarca em uma tremenda viagem em busca do pai desaparecido. Nessa tresloucada e surreal aventura pelo universo são acompanhados de um garoto tão “estranho” quanto eles e atravessam o tempo e o espaço conhecendo criaturas das mais diversas estirpes. Usando uma paleta de cores reduzida, mas que produz bons efeitos, Hope Larson conversa sobre diferenças e convivência em harmonia com eficácia, porém, com pouco brilho.

Nota: 6,0


O carioca Rapha Pinheiro começou a fazer quadrinhos em 2014. Estudou na Inglaterra e na França, onde concebeu “Salto”, graphic novel viabilizada através de financiamento coletivo que em 2017 ganhou distribuição pela Avec Editora. Nela, concebeu um mundo fantástico onde são permitidas analogias com nossa vida em sociedade. Em formato grande (21,3 x 27,7 cm) e 96 páginas conhecemos Intos, uma cidade escondida debaixo da terra devido a eventos naturais que forçaram os habitantes a migrarem para uma situação única de salvação. Guiada por informações do governo e do dono da fábrica que emprega a maior parte da população, todos vivem no piloto automático, sempre com um pequeno temor inserido no peito de que algo desande novamente e, por conta disso, seguem fielmente as regras. Mas no meio disso existe o jovem Nü. Ousado, inquieto e diferente acaba se envolvendo por acidente em algo maior do que imaginaria e cabe a ele revelar a todos que as coisas não são exatamente como pensavam. Com arte exuberante e cores que agravam mais as nuances que o texto questiona, temos um trabalho que agrega diversas influências e explode no fundo da aventura que narra em crítica social e comportamental, além de versar muito bem sobre preconceitos.

Nota: 8,0


Existem amizades que estão ali desde o início da vida e lá permanecem até quando passamos dos 30, dos 40 anos. São raras, isso é fato, mas existem. Amizades com cumplicidade e liberdade total entre as partes que ajudam a seguir em uma vida cada vez mais complexa e dinâmica. Barba e Leo se conhecem desde pequeno e formataram um desses casos em “Open Bar - Edição Definitiva” do quadrinista Eduardo Medeiros de “Sopa de Salsicha”. Essa nova edição lançada no final do ano passado pela Stout Club através da Panini Comics tem 272 páginas e apresenta os dois volumes da história concebida por esse gaúcho radicado em Florianópolis. O ponto de partida é um bar que Barba recebe de herança do pai e chama Leo para entrar de sócio nesse empreendimento que está amarrado a algumas pequenas regras de posse. Enquanto trata dessa nova jornada dos amigos com humor e leveza, o autor esconde ao fundo temas bem mais complicados como relacionamento familiar, casamento, paternidade e culpa. É uma história arrebatadora que na sua sutileza puxa o leitor cada vez mais para dentro da trama, fazendo este se apegar aos personagens enquanto caminha para um final surpreendente e devastador.

Nota: 9,0