Era tarde de 21 de junho de 1986.
Estava eu então com 7 anos e alguns meses e não parava de chorar no pátio da
casa dos meus pais. Lembro de uma das minha irmãs me consolando, de um monte de
gente bufando ferozmente contra o Zico, de ver a decepção entalhada no rosto
dos meus amigos e de especialmente um garoto da rua subindo na escada para
cortar a ornamentação da nossa rua que tanto tempo levou para ser construída e tanta
diversão nos trouxe. Essa data foi o dia em que a França de Platini, Amoros e
Giresse acabava de vez com aquele sonho de ser campeão do mundo que ainda
passava pela cabeça de Edinho, Sócrates, Júnior, Zico e Falcão.
Minha memória é ótima para
guardar momentos e essa foi a primeira experiência que tive com essa tal de
Copa do Mundo. Eu morava em Castanhal nessa época (cidade para a qual praticamente
voltei agora), a 70 e poucos quilômetros da capital Belém, e meu universo se
resumia praticamente a futebol. Meu pai, sendo um excelente jogador que só
deixou de bater sua pelada com mais de 60 anos quando a doença apareceu, era
apaixonado por bola e transferiu isso para o seu único filho homem, também
conhecido como eu. Torcia para o Paysandu e Flamengo e sempre me encantava com
as histórias dos seus títulos, como também por histórias de ídolos como
Garrincha, Quarentinha, Ademir da Guia, Dida (que pare ele foi melhor que Pelé)
e, lógico, Zico.
Para mim, nessa idade, o Galinho
de Quintino era a personificação maior do esporte. Ídolo quase sem contestação.
Por isso que enquanto eu chorava em junho de 1986 no pátio, ninguém ali sabia
que a minha tristeza era não somente pela desclassificação da seleção e o
término de todo o clima festivo, mas também era porque me sentia traído por
Zico. Como logo ele podia perder um pênalti que nos levaria a vitória? Como
logo ele podia assim do nada acabar com a alegria de toda a minha rua? Na idade
que tinha ainda não entendia os fatos de que ele entrara no segundo tempo, deu o passe para o Branco sofrer o pênalti e perdeu este sim, mas se redimiu e fez depois, sendo que na
verdade o pênalti que nos deixou fora foi cobrado pelo zagueiro Júlio César.
Fiquei “de mal” com Zico até o título do Flamengo em 1987. Eu era um garoto,
pobre do Zico.
E agora essa tal de Copa do Mundo
que experimentei pela primeira vez há 28 anos vai começar novamente. E aqui no
Brasil. Quero deixar bem claro que esse não é um texto crítico ou político (e
nem intenção de ser), é um simples exercício de saudade, nada além disso.
Concordo plenamente com todos os protestos (apesar de achar que agora já não
servem para muita coisa), mas também entendo que é fundamental que esses
protestos e esse nosso despertar cívico não pare agora na Copa do Mundo, mas
que continue por todo o ano, por toda a vida. No meu trabalho com órgãos
públicos estou calejado de ver os desmandos de políticos e seus asseclas em
todas as esferas governamentais, e isso realmente tem que acabar. Porém esse
texto não falará disso, deixo isso nas mãos de gente mais hábil.
Esse texto é sobre o futebol,
sobre mim, sobre o meu pai, sobre a Copa do Mundo. É um texto de um apaixonado,
um texto de um cara que hoje aos 35 anos ainda tem o futebol muito presente na
vida. O futebol me trouxe amigos (e muitos estão comigo até hoje), paixões, alegrias,
decepções, tristezas. O futebol, acima de tudo, foi o fio condutor de toda a
relação que tive com meu pai falecido em 2006. Ele nos unia e por conta disso
nossa relação foi boa e repleta de respeito, carinho e uma cumplicidade que
minha mãe nunca iria entender. Foi assim quando aos 10 anos ele me presenteou
com uma chuteira Adidas (caríssima na época) para a minha estreia na quarta
zaga da escolinha do bairro. Investiu como pode, mas infelizmente minha
habilidade não prestava muita atenção nisso. Porém, mesmo sem ser um craque
como ele fora e todos falavam, o futebol ficou e até hoje jogo minha bolinha
duas ou três vezes por semana. E faço isso com toda a entrega do mundo.
E principalmente por essa relação,
é que nunca, em nenhum momento vou torcer contra a seleção do meu país. E isso
não é dar uma de Pacheco ou ser ufanista e patriota patético. Isso é
simplesmente pelo futebol. Cresci torcendo pela amarelinha e não vai ser agora
durante os 90 minutos de um jogo que vou deixar de fazer isso. Ainda mais em
Copa do Mundo. Copa do Mundo que desde 1986 habita em um pequeno canto aqui dentro
do meu corpo. O futebol de hoje não tem mais o romantismo de antes, isso é
certo. É muito mais um negócio. É pop. Extremamente pop. Craques como Cristiano
Ronaldo, Messi e Neymar não podem ser comparados no quesito mídia com outros de
décadas anteriores, mas isso não me impede de torcer como sempre fiz. Triste de
mim seria se isso acontecesse.
Na Copa seguinte a decepção de
1986, a de 1990, eu já entendia mais um pouco sobre tudo a minha volta e foi
com raiva que vi a seleção cair diante da Argentina com um gol do Caniggia
depois do passe do Maradona. Lembro-me do meu pai cabisbaixo nesse dia como
poucas vezes vi. No entanto, em 1994 viria a forra. Depois dos pênaltis (que
meu pai escutou sozinho no rádio trancado dentro do carro) a explosão de
alegria era igual do Galvão Bueno enlouquecido na tevê. Nesse dia fiquei bêbado,
a primeira vez de tantas na adolescência (e tantas após isso), tudo culpa de
Romário e cia. A Copa de 1994 representou um marco para minha geração,
futebolisticamente falando. Era um confronto de ideias, a criação de novos
ídolos, e a esperança de que dali em diante tudo poderia ser melhor. Tudo
mesmo. Adolescentes sempre acham que podem tudo.
Já em 1998 tudo foi programado.
Assisti a maioria dos jogos em casa com uma imensidão de amigos. No jogo contra
a Holanda na semifinal (aquele em que o Zé Carlos jogou), os pênaltis mereciam
uma foto. Umas 20 pessoas ajoelhadas de mãos dadas rezando para São Taffarel,
que ouviu nossas preces. Na final, meu pai chegou comigo e falou para convidar
todo mundo para almoçar em casa que ele ia pedir para a mãe fazer uma feijoada e
um mingau de milho (época de festa junina sempre tem). A turma chegou cedo e
começamos a beber, nos espantamos com o drama do Ronaldo e ficamos tensos sobre
o que viria a seguir. Meu pai que não bebia comprou equivocadamente algumas
cervejas sem álcool e também fazia sua parte. Eu capotei bêbado no início do
jogo e só acordei no finalzinho quando estava 3 a 0 e a tristeza já tomava
conta da casa. Até hoje nunca quis ver esse jogo todo.
Em 2002 tudo parecia sorrir para
mim. Amores se concretizando, trabalho deslanchando, a vida seguindo seu rumo.
Os jogos de madrugada me impediram de assistir com meu pai, pois trabalhava e morava
em outra cidade e a final assisti na casa de um amigo, mas logo após o jogo
corri para lhe dar um abraço. Durante essa copa vivi mais do que todas as
outras, sem dúvida alguma. Grandes tempos. Em contrapartida a esse momento da
minha vida, o câncer já começava a perturbar bem o meu velho nessa época e ele
vivia dizendo que não veria mais nenhuma copa. Aquilo soava pesado aos meus
ouvidos, saber que aquele momento único que sempre cultivamos juntos sorrindo
ou chorando não iria mais se repetir. Não cansava de repetir para ele que isso
não ia acontecer. Que ele ainda veria o Brasil ser hexa.
Em 2006 no jogo em que o Henry fez
o gol e desclassificou o Brasil eu estava fora de casa, mas voltei para ver o
jogo ao seu lado, que já com a doença em estado avançadíssimo ficou no quarto
conversando comigo. Depois da derrota, bateu aquela dor de saber que realmente
ele estava certo, que aquela seria sua última copa do mundo. A raiva que tive
de Ronaldinho Gaúcho, Adriano, Roberto Carlos e Ronaldo naquele dia era
extrema. Era irracional. Não só por ter perdido o jogo em si, mas por eles terem
privado meu velho de ver o Brasil campeão novamente, de terem me privado de
mais uma vez abraçá-lo e gritar “É Campeão!”. Uma raiva que superava e muito a
do garoto de 1986 com Zico. Meu pai faleceu em 11 de julho daquele ano e a
horrível final entre Itália e França foi no dia 9, ou seja, se o Brasil
chegasse ele ainda teria visto.
2010 foi a primeira Copa do Mundo
sem meu pai. E a derrota para a Holanda foi dura, potente, forte como uma
grande sequência de chutes no estômago. Enquanto os analistas teciam suas teses
na televisão sobre a derrota, eu ficava pensando se era justo perder aquele
jogo, mas me lembrava que meu pai sempre falava que justiça não combina com
futebol e essa é sua graça. Eu sabia disso desde garoto quando ouvia ao seu
lado no rádio a transmissão dos jogos do Flamengo na Rádio Globo com o
garotinho José Carlos Araújo narrando. Meu pai me ensinara. Assim como me ensinara
a ser justo, correto e simples. Assim como me ensinara a vida toda o prazer de
ver um jogo de futebol, de chutar uma bola, de conversar com os amigos depois.
Meu pai me deu o futebol, isso é certo, e por isso lhe serei eternamente grato.
Dessa maneira, e aqui deixo claro
que não repreendo ninguém por uma escolha diferente da minha, não tenho como
torcer contra o Brasil, repito novamente. Torcer para a seleção canarinho está
acima da CBF, da FIFA, dos políticos e suas falcatruas. São coisas distintas.
No ano passado, dia 30 de junho de 2013 estava no Maracanã com mais de 70 mil
pessoas na final das Copa das Confederações vendo Fred, Neymar, Thiago Silva,
David Luiz e Paulinho arrasarem com a Fúria Espanhola. Um baita show. Senti a
mesma emoção e alegria de quando vi o show do Paul McCartney, ou o do R.E.M. Emocionante
pra cacete.
E, neste momento, mesmo sem saber
se esse ano irei para algum jogo ou não (já que não consegui ingresso apesar
das inúmeras tentativas), a partir do dia 12 de junho de 2014 estarei de peito
aberto, ouvidos atentos e olhos interessados na Copa do Mundo. Me permito sim
deixar que esse sentimento de esperança e de alegria invada um pouco o meu
corpo, e me faça ser mais feliz junto com essa velha amiga chamada Copa do
Mundo seja em família, nos bares com os amigos ou no pensamento constante de cumplicidade com meu pai.
Então, anote aí. Vamos ser hexa,
meu velho. Torça de onde estiver. Vou lhe acompanhar daqui.