domingo, 28 de fevereiro de 2016

Quadrinhos: "Baixo Centro" e "Gavião Arqueiro: Minha Vida Como Uma Arma"

 

A graphic novel “Baixo Centro” é uma publicação da editora Miguilim do final de 2015. Primeira obra completa do artista visual mineiro Jão foi feita e idealizada em parceria com o professor e poeta (e também mineiro) Rafael no que concerne ao roteiro. Com 64 páginas destaca-se com um trabalho editorial vasto e bastante cuidadoso, apresentando diversas informações e textos, o que é sempre interessante. Os desenhos simples, mas precisos, resultam em uma convincente retratação de Belo Horizonte (que indiretamente também é personagem) passando por lugares como a Avenida Afonso Pena, a Praça da Estação e o viaduto Santa Tereza. É uma história que funciona calcada no ritmo, com algum humor e sem a utilização de palavras. Obras desenvolvidas assim encontram maiores dificuldades em agregar o leitor e na maioria dos casos passeiam entre o ruim e o mediano, contudo em “Baixo Centro” as coisas são diferentes e funcionam muito bem, ainda mais pelo tamanho da obra, que representa um diferencial e tanto pois a arte acaba tendo um impacto maior, principalmente nas páginas duplas e quadros maiores. Os dois personagens principais do álbum desandam a correr no início e cada vez mais as pessoas vão indo atrás, sem muita razão específica na maioria das vezes, já que essa explicação não é demonstrada, o que leva a uma gama de interpretações distintas e dá a obra ares mais instigantes ainda. Podem-se destacar várias influências no trabalho que debulham na região que dá nome ao título conhecida pela sua movimentação constante e intensidade cultural e artística que ocorre por lá. Ao retratar a convergência dos dois mundos existentes ali - o diurno (do trabalho, da correria) e o noturno (menos movimentado, mas mais perigoso e intenso) – Jão e Rafael são responsáveis por uma interessante obra que tem poder para ser lembrada além do presente e por consequência atestam ainda mais o bom momento que vive o quadrinho nacional.

Nota: 7,5


Você está lá no meio de uma batalha junto com deuses, supersoldados, homens em armaduras tecnologicamente avançadas, mutantes, monstros, magos e o que mais aparecer pela frente. E o que você tem para oferecer? Bom, você tem um arco e flecha. Ok, está certo que você tem uma mira impecável e algumas das flechas são cheias de surpresas. Mas, convenhamos, são apenas flechas, né? Esse é o mundo do Gavião Arqueiro, personagem que começou como criminoso antes de entrar para o grupo dos maiores heróis da terra (Os Vingadores, lógico) e se tornou peça fundamental tanto nos quadrinhos como no cinema. O personagem que já morreu, ressuscitou, abandonou a alcunha original, brigou com tudo e todos e destilou seu humor seco e ácido durante os anos ganhou uma revista solo no final de 2012 pelas mãos do roteirista Matt Fraction (Homem de Ferro) e dos artistas David Aja e Javier Pulido. O início dessa elogiada fase (com razão, diga-se de passagem) que já havia sido publicada antes pela Panini em suas revistas mensais ganhou um encadernado de capa dura no final do ano passado juntando as 5 primeiras edições e mais uma especial de “Jovens Vingadores”. As 140 páginas de “Gavião Arqueiro: Minha Vida Como uma Arma” mostra o herói fora das missões de salvar o mundo e das loucuras pesadas que envolvem os Vingadores. Focado em contar o cotidiano desse peculiar herói, Matt Fraction acerta em cheio ao desenvolver uma história que une ação, tramas de espionagem, compaixão e humor. Com o auxílio nesta fase inicial da jovem Kate Bishop (que assumiu seu arco enquanto ele estava “sumido”) ainda apresenta uma pequena tensão sexual para dar mais um clima. A arte é funcional e esbalda-se na utilização do roxo (cor do personagem), o que se revela uma grande sacada. As histórias publicadas em “Gavião Arqueiro: Minha Vida Como uma Arma” servem tanto para divertir enquanto se está lendo, quanto dá uma grande revigorada no personagem para leitores que estão chegando agora no Universo Marvel, mostrando um pouco dos dramas cotidianos de um herói e alguns dos seus dissabores e prazeres mais comuns.

Nota: 8,5


quarta-feira, 24 de fevereiro de 2016

Discos da Vida: "Smile" (1990) - Ride


Músicas são atemporais e por mais banal que possa ser essa premissa, isso nunca deixa de me impressionar. Com o passar dos anos alguns discos ficam definitivamente marcados na memória afetiva de modo mais intenso que outros. São discos que fazem parte da vida e estão inexoravelmente anexados a um período específico do tempo que quando você os torna a ouvir as lembranças inundam a mente e inserem sensações que provavelmente fazia tempo que não apareciam por lá.

Isso acontece por exemplo com “Smile” da banda inglesa de Oxford, Ride. Formada em 1988 o grupo apresentava em “Smile” uma compilação dos primeiros dois EP’s (chamados “Ride” e “Play”) e continha 8 músicas em pouco mais de 31 minutos. Em uma época sem acesso a internet e com o país ainda patinando após a primeira eleição direta geral em 25 anos, só se conseguia alguns discos caso solicitasse a importação, o que quase sempre era viabilizado por 3 ou 4 amigos que se juntavam em interesse comum para dedicar a escassa grana para esse fim.

Eu tinha “Smile” de um lado de uma fita cassete, onde “Perfect Time” cortava antes do fim. Cruel, muito cruel. Só para efeito de ambientação do outro lado dessa fita tinha, salvo engano, canções do “Some Friendly” do Charlatans. O Ride era formado pelo guitarrista e vocalista Andy Bell, por Mark Gardener no outro vocal e guitarra, Stephan Queralt no baixo e Loz Colbert na bateria e fazia a sonoridade típica da Inglaterra do final dos 80 e começo dos 90, sendo depois figurinha importante dentro do shoegaze.

O Ride tinha fortes influências de My Blood Valentine e The Jesus And Mary Chain (bandas com lugar cativo na casa, sendo a segunda uma das minhas preferidas até hoje) e conjugava lindas melodias embaçadas com barulho, trazendo na dupla de guitarristas o ponto forte. A banda ainda foi responsável por ótimos discos como “Nowhere” (1990) e “Carnival Of Light” (1994) até acabar para depois retornar recentemente para uma série de shows.

No entanto, o que ficou marcado para mim foi mesmo “Smile”, um álbum que sobreviveu aos anos. Dia desses escutando novamente o disco em um desses serviços de streaming a sensação de nostalgia foi imediata. De “Chelsea Girl” (um esboço de clássico para mim na época) passando por “Like a Daydream” (que tantas e tantas vezes ocupou espaço no meu som) e desembarcando em “Silver” já me lembrava de quase tudo nelas, dos riffs as letras. Escutei ali 3, 4, 5, vezes seguida.

“Smile” é um retrato de uma sonoridade que me cativa até hoje, e na minha terna juventude, onde o mundo ainda parecia um lugar demasiadamente grande para se estar, embalou as minhas tardes com suas guitarras e melodias, enquanto começava a ser penalizado pelas primeiras paixonites e desenganos, e não parava de esboçar palavras ruins em um caderno usado dentro de um quarto de uma cidade no interior do Pará.


Aqui a banda ao vivo com “Chelsea Girl” em show do ano passado:


terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

Quadrinhos: "The Witcher: A Casa de Vidro" e "O Capuz: O Sangue que vem das Pedras"

 

“The Witcher” foi criado no início dos anos 90 pelo escritor polonês Andrzej Sapkowski e de lá saltou para os games, se tornando um sucesso dentro desse mercado. Como é cada vez mais comum a história do caçador de monstros Geralt de Rívia saltou para outras mídias. Em 2014 a CD Projeckt RED dona dos direitos sobre a obra chamou a Dark Horse Comics para lançar uma série em quadrinhos. O resultado das primeiras 5 edições podemos ver aqui no Brasil em “The Witcher: A Casa de Vidro”, um vistoso encadernado da Media Pixel publicado no passado. Com 144 páginas apresenta roteiro de Paul Tobin (“The Bionic Woman”) e arte de Joe Querio (“Hellboy”) com o reforço de extras contendo capas alternativas, esboços e concepções. Geralt de Rívia é um híbrido entre bruxo e mago que segue por um mundo medieval salvando pessoas comuns de monstros e aberrações, desde que exista algum pagamento envolvido. Em uma de suas andanças se depara com um caçador à beira da água. Solitário como ele, rola certa empatia entre os dois depois de alguma comida e uns bons goles de vinho e resolvem seguir em parceria. Quando entram em uma floresta repleta de mistérios e criaturas assustadoras, as coisas começam a parecer bem diferentes do que se esperava no começo. O roteiro de Paul Tobin investe de maneira competente na tensão dos mistérios e adentra o universo do horror sem deixar de lado uma ou outra piada no caminho, assim como acerta no tom adulto da trama. Já a arte de Joe Querio conta com boas influências de Mike Mignola (não é por acaso que o artista aparece nos extras) e esse estilo serve bem ao tom escabroso e desvanecido que o trabalho pede. A grande vantagem dessa adaptação para os quadrinhos é ser uma história independente, por mais que ambientada na mesma atmosfera, conseguindo assim ser funcional para todos os leitores incluindo aqueles que não conhecem o game.

Nota: 7,0


Parker Robbins não é um cara dotado das qualidades mais nobres do mundo, temos que convir. Some-se a isso o fato que a vida não anda lá muito fácil e a pressão está para estourar a cabeça. A mãe está internada muito doente em um manicômio, a namorada ficou grávida e a grana anda curta porque os golpes que o primo arruma cada vez mais resultam em nada. Até a prostituta (quase amante) resolveu lhe encher o saco. É quando em mais um golpe furado e totalmente sem querer, acaba matando um ser estranho e ao roubar dele algumas coisas percebe que isso lhe dá alguns poderes como invisibilidade e o poder de voar. Resumindo: agora a vida vai melhorar. Ledo engano. “O Capuz: O Sangue que vem das Pedras” é um encadernado que a Panini Books lança agora no mercado (mesmo que a data da identificação seja de 2015) e reúne as edições 1 a 6 de “The Hood”, publicadas originalmente entre julho e dezembro de 2002. Com 148 páginas traz roteiro do ótimo Brian K. Vaughan (“Os Fugitivos”, “Ex-Machina”), desenhos de Kyle Holtz e arte final de Eric Powell. As histórias já haviam sido publicadas no país em outras revistas em meados dos anos 2000, mas agora aparecem juntas nesse arco de formação de um criminoso. Mesmo sendo um material antigo é uma publicação que tem bastante mérito. A construção do personagem pelas mãos de Brian K. Vaughan e sua relação com as “responsabilidades” que vem com os poderes é factível e sem pressa, e isso ajuda a arte nem tão inspirada assim de Kyle Holtz. É sempre interessante quando as grandes editoras dedicam histórias mais detalhadas sobre o mundo dos criminosos, trazendo um novo viés para o universo a que se está acostumado. Com temática mais adulta e uma trama fluida e eficaz, “O Capuz: O Sangue que vem das Pedras” se configura em uma ótima pedida.

Nota: 8,0



sábado, 6 de fevereiro de 2016

Quadrinhos: "Mono" e “Hellboy no Inferno – Volume 1: Descenso”


“Mono” é um álbum de quadrinhos viabilizado através de campanha de crowdfunding no ano passado, mas só chega realmente agora em 2016. Com formato horizontal (16 x 21cm) e 80 páginas é o primeiro trabalho dentro da nona arte do casal de pernambucanos Júnior Ramos e Natália Lima, proprietários de um estúdio chamado “Sapo Lendário”. A trama invade o campo da ficção científica e mostra um futuro onde todos os governantes ajoelham perante a GateCorp, empresa que domina a essencial tecnologia do teleporte. A Esfera é uma associação formada por cientistas que briga contra isso, mas sem alcançar muito sucesso, enquanto o mundo caminha para o final. Para salvar essa terra em declínio a esperança recai sobre um robô (que empresta o nome ao título) e uma tripulação diversificada de etnias e pensamentos que parte em busca de encontrar moedas especiais, na verdade, fragmentos de um ser místico antigo e poderoso que pode permitir essa salvação. “Mono” tem arte bonita, bem influenciada pelos mangás e cores que valorizam isso, sendo um ótimo destaque da obra. O cuidado com a edição também é de se valorizar. Tudo muito bem feito, com direito a extras que servem de subsídio não somente para a trama em si, assim como para entender os caminhos que levaram a criação da hq. Por outro lado, o roteiro deixa bastante a desejar, o que deixa a trama confusa e um pouco sem sentido. Quando se trata de fazer ficção científica um dos principais pontos é tentar deixar aquilo que está se contando o mais viável possível, sem apressar demais os fatos ou sobrepor ideias só pelo simples fato de as exibir. O enredo não ajuda nisso e não amarra todos os lados da história com a precisão necessária, o que acaba deixando “Mono” como uma boa ideia, bem executada visualmente, mas que não consegue atingir todo o potencial.

Nota: 6,0

Site dos autores: http://sapolendario.tumblr.com


Mike Mignola apresentou Hellboy ao mundo em 1993 e de lá para cá o personagem viveu diversas aventuras nos quadrinhos, além de animações e dois bons filmes. Longe da prancheta de desenho da sua criação mais famosa desde 2001, o quadrinhista resolveu voltar em 2012 com o lançamento da primeira aventura do herói no inferno. A viagem de Hellboy ao inferno acontece logo após ele salvar a humanidade quando é assassinado de modo furtivo. Mesmo tendo feitos e mais feitos nobres no currículo ele não foi mandado para os céus e sim para sua casa natal, o Inferno. Que grande prêmio! Essa trama foi lançada aqui no final do ano passado pela Mythos Books em luxuoso encadernado de capa dura intitulado “Hellboy no Inferno – Volume 1: Descenso”, com 194 páginas. Como é costumeiro nos lançamentos da Mythos o trabalho editorial é primoroso, com vários extras, entrevista com o autor e introdução ambientando o leitor contextualmente. O álbum reúne as 5 primeiras edições da trama lançadas nos EUA entre dezembro de 2012 e dezembro de 2013. No total serão 10 revistas, sendo que a edição mais recente lá é a de número 8. Ao descer para o inferno que não visitava desde criança, Hellboy recebe a cobrança para assumir o trono que está vago e lida com parentes nada amistosos e novos e velhos inimigos, mesmo sem saber ao certo a trama que se desenvolve por trás disso. Ver Hellboy com Mike Mignola no comando não só do roteiro, como também da arte é outra história. Com maior liberdade criativa por não ter que retratar um universo real, o autor se esbalda em novas formas e construções, sempre em tons escuros, com muito uso de sombras e as cores cirúrgicas do hábil Dave Stewart. “Hellboy no Inferno – Volume 1: Descenso” é uma grande aventura a altura do personagem e quadrinhos da melhor estirpe. Vale muito.

Nota: 9,0



terça-feira, 2 de fevereiro de 2016

Literatura: "Mosquitolândia" e "Sobrevivente"


A separação de um casal nunca é tarefa fácil. Tanto para os dois lados envolvidos, quanto para os filhos, aliás, principalmente para os filhos. Mary Iris Malone, a personagem principal de “Mosquitolândia” (Mosquitoland, originalmente) está passando justamente por isso. Além dos pais se separarem ela ainda teve que mudar de casa, do estado do Ohio para o Mississippi. Não é fácil não. É em cima desse ponto que o norte-americano, nascido no Kentucky, David Arnold, lançou o primeiro livro lá fora ano passado. A editora Intrínseca publicou aqui também em 2015 a obra com 352 páginas e tradução de Alyne Azuma. Na trama a jovem de 16 anos depois de saber de algumas notícias que lhe tiram do eixo (e que classifica como “bombásticas”) resolve deixar o pai e a madrasta para trás e migra em direção a mãe de ônibus. Durante os 1.524 quilômetros que a separam desse objetivo muita coisa vai acontecer. Em “Mosquitolândia”, David Arnold usa a clássica história de crescimento pessoal durante uma viagem mostrando que ninguém sai igual no final do caminho. Com diversos enxertos de cultura pop pelo meio e uma protagonista que mesmo sem ser espetacular agrada com o humor enviesado, o jeito indie e a maneira de se posicionar perante o mundo. Dono de uma escrita fácil e ligeira, o autor insere no meio dessa viagem por crescimento assuntos relativamente mais densos e essa aposta acaba retirando um pouco o livro do usual dentro da categoria de obras juvenis. Não é obra para ganhar muitos superlativos, longe disso, mas é funcional e ritmada, forçando o leitor a ir até o final e o recompensando com algumas risadas no decorrer do percurso.

Nota: 6,5

Leia um trecho, aqui.

Twitter: http://twitter.com/roofbeam


“Sobrevivente” (Survivor, no original) é o segundo livro do escritor Chuck Palahniuk. Lançado em 1999 sucedeu “Clube da Luta” de 1996 e mostrou a mesma literatura visceral, marcada com muita ironia e acidez. A Editora Leya publicou a obra aqui em 2012 com 359 páginas e tradução de Tatiana Leão, ganhando reimpressão em 2014. “Sobrevivente” apresenta a história contada de trás para a frente (inclusive as páginas são numeradas de modo decrescente), quando Tender Branson está sequestrando um avião e planeja ir de encontro com a água. Para saber como o protagonista chegou a esse ponto, o autor regride um pouco no tempo e conta uma história repleta de loucuras e personagens peculiares. Tender Branson, por exemplo, é bastante complexo, nasceu e foi criado em uma comunidade religiosa, uma seita onde as regras eram duras e estapafúrdias. Aos 17 anos rumou para o mundo com o intuito de trabalhar e remeter a grana para a comunidade, continuando assim a servir a esta. As coisas andam dessa maneira até uma tragédia se abater sobre a igreja e ele ganhar liberdade e uma psicóloga meio tresloucada, enquanto trabalha como zelador e mordomo de um casal igualmente maluco para a noite atender telefonemas de pretensos suicidas (o número saiu errado em um jornal), os quais ele só incentiva. Enquanto Tender Branson conta a vida para a caixa preta do avião, Chuck Palahniuk despeja frases e mais frases contra a religião e o circo da mídia, indo também ao encontro do próprio modo de vida dos EUA, assim como da sociedade que absorve e aceita aquilo que lhe é entregado sem questionar. “Sobrevivente” tem leves semelhanças com “Clube da Luta” e por se tratar do segundo romance do autor, ainda mostra uma grande ferocidade crítica. Tender Branson pode não ser um Tyler Durden, mas poderia normalmente ser seu melhor amigo.

Nota: 8,5

Site do autor: http://chuckpalahniuk.net