quinta-feira, 16 de abril de 2015

Literatura: Dead Kennedys e Ramones

“Dead Kennedys - Fresh Fruit For Rotting Vegetables (os primeiros anos)” já escancara logo no título as intenções. Escrito pelo jornalista Alex Ogg e com tradução de Alexandre Saldanha tem 240 páginas e lançamento nacional no ano passado pela Edições Ideal (que faz um ótimo trabalho no mercado editorial brasileiro com publicações relacionadas a música). No livro é apresentado o início da carreira de uma das bandas mais poderosas do punk. Desde a formação as páginas avançam até pouco tempo depois do lançamento de estreia em 1980 (que empresta o nome ao título), antes da separação em 1986 (esqueça a banda depois disso nas novas formações) e de todos os problemas que levaram a crise, principalmente a briga por direitos autorais e méritos de criação entre o vocalista Jello Biafra, o guitarrista East Baty Ray e o baixista Klaus Flouride. O álbum que trouxe canções do porte de “Kill The Poor”, “California Über Alles”, “In The Head” e “Holiday in Cambodia”, evidentemente é o foco mostrando tanto fatos sobre a elaboração e gravação, como também indo além para narrar todo o rebuliço e importância da obra. O livro conta com várias fotos do acervo do guitarrista e de ilustrações de Winston Smith, que entrecortam o texto de Alex Ogg baseado nas entrevistas que fez com os integrantes do grupo. Leitura completamente indicada para fãs do disco e da música possante contida nele.

Nota: 7,0

P.S: A editora disponibiliza algumas páginas para leitura gratuita, aqui.

“Na Estrada com os Ramones” foi lançado originalmente em 2003 lá fora. Escrito pelo gerente de turnê da banda, Monte A. Melnick, em parceria com o jornalista Frank Meyer ganhou edição nacional em 2013 através da Edições Ideal (sempre ela) com tradução de Alexandre Saldanha e 264 páginas de muita informação. Informação não muito nova para quem leu alguma das autobiografias de integrantes do grupo ou de outras diversas relacionadas ao quarteto mais famoso do punk rock, é verdade, mas ainda assim bem prazerosa. Até porque apresenta uma visão um pouco diferente, pois é vista mais de fora por alguém que estava lá desde o início e se fez presente nos 2.263 shows feitos (todos relacionados em um índice no livro) entre 30 de março de 1974 e 6 de agosto de 1996, quando as atividades musicais foram encerradas, enquanto o mito só faz aumentar cada vez mais. Das gravações primordiais até o fatídico e anunciado final, o leitor pode conhecer um pouco mais sobre a dificuldade de convívio entre os integrantes, a constante briga por domínio territorial, o uso demasiado de drogas e álcool e o profissionalismo absurdo com que tudo foi tocado apesar de todas essas questões, o que chega a impressionar. Leitura plenamente válida. 

Nota: 7,0

P.S: A editora disponibiliza algumas páginas para leitura gratuita, aqui.

terça-feira, 7 de abril de 2015

" A Hora dos Ruminantes" - José J. Veiga

É um dia como qualquer outro. Os afazeres são feitos calmamente com dedicação e parcimônia. Tudo parece igual como sempre foi em uma pacata vila interiorana dos anos 60. Ao longe ouvem-se cantos de pássaros e ruídos de animais. Até que ao acordar no dia seguinte os habitantes enxergam um acampamento cheio e organizado no outro lado do rio, conectado por uma pequena ponte. De súbito, a rotina vai para o espaço, pois a curiosidade toma conta de todos que procuram saber quem se aventura por terras tão remotas e quais são seus objetivos.

“A Hora dos Ruminantes”, livro escrito pelo goiano radicado no Rio de Janeiro José J. Veiga e publicado pela primeira vez em 1966 tem como ponto de partida o descrito no parágrafo anterior. É o segundo livro do autor e sucede “Os Cavalinhos de Platipanto” de 1959 com seus 12 contos que fazem intersecção entre sonho e realidade. Os dois livros estão sendo republicados esse ano pela Companhia das Letras em comemoração ao centenário de nascimento do autor (que faleceu em 1999) e os demais trabalhos concebidos por ele também estão programados para sair.

Essa nova edição de “A Hora dos Ruminantes” ganha um bocado de capricho com direito a prefácio detalhado, índice de obras relacionadas e capa dura. Com 152 páginas demonstra ao novo leitor o realismo fantástico de José J. Veiga que ganha paralelo na obra de autores sul-americanos como Gabriel Garcia Márquez, Julio Cortázar, Arturo Uslar Pietri e Murilo Rubião. É um texto onde as alegorias e metáforas tomam conta do cenário, mas sem deixar de lado a parte coloquial da fala dos habitantes e, por conseguinte, a montagem de um retrato do interior do Brasil.

O livro é dividido em três partes: “A Chegada”, “O Dia dos Cachorros” e “O Dia dos Bois”. Na primeira, como já retratado acima, a vila de Manarairema se depara com estranhos que chegam do nada e não se apresentam nem para conversar. O estranhamento inicial faz contrapartida com o medo que o ser humano tem da mudança, da alteração da rotina, do novo. Mas ainda mais fundo está a analogia e a relação com a ditadura militar em voga no país na época, podendo partir do pressuposto que os novos moradores do local são “gente do governo”, como diz o texto.

Com o medo se espalhando entre os simples moradores que passam a sofrer pequenas, mas frequentes coerções, a vila de Manarairema sofre drásticos ajustes. Isso só piora quando cães tomam de assalto o local obrigando todos a ficarem ressabiados e com pânico do que poderá vir, ou depois quando são bois que adentram esse espaço e não permitem nem que se saia de casa, precisando ser inventando todo um novo meio de comunicação para que a cidade sobreviva em meio a esses acontecimentos estranhos e tão sem sentido para o povo da vila.

No meio dos diálogos José J. Veiga insere bom humor ao lado do espanto, com a inserção de diversos ditados populares, mas também é no meio desses diálogos que amplifica as imagens alegóricas que fazem menção a verdadeira invasão que tomou conta do país naqueles tempos. Por outro lado, “A Hora dos Ruminantes” é um livro tão bem construído que funciona até se o leitor relevar isso e considerar as situações somente pelo viés da estranheza e da opressão que os habitantes de Manarairema se encontram adicionados. São essas possibilidades que constroem o maior mérito da obra.

Nota: 9,0

A Companhia das Letras disponibiliza gratuitamente um trecho para leitura, aqui.

Assista um vídeo com Antonio Arnoni Prado (responsável pelo prefácio do livro) falando mais sobre a obra do autor:

domingo, 5 de abril de 2015

"Dois Irmãos" - Fábio Moon e Gabriel Bá

O escritor manauara Milton Hatoum nasceu em 1952. Em 2000 lançou o romance “Dois Irmãos” ambientando em Manaus que conta a história dos gêmeos Omar e Yaqub, filhos de pais com origem libanesa. O livro é um romance denso que narra um drama familiar de proporções amplas, um pequeno épico da literatura nacional. O diretor Luiz Fernando Carvalho finaliza uma minissérie sobre a obra para estrear esse ano na Rede Globo, com nomes como Juliana Paes e Antônio Fagundes no elenco, porém, antes disso “Dois Irmãos” chega às livrarias em formato de graphic novel.

Os irmãos (e também gêmeos) paulistas Fábio Moon e Gabriel Bá trabalharam por quatro anos na adaptação para os quadrinhos. Essa adaptação foi lançada recentemente pela Companhia das Letras, dentro do selo Quadrinhos na Cia., com 232 páginas, formato grande (18 x 24,5cm) e em preto e branco. A talentosa dupla já havia se aventurado na conversão literária com “O Alienista” de Machado de Assis, mas foi em trabalhos originais que exibiram sua vocação com maior classe, como atesta a admirável “Daytripper”, premiada edição 
lançada por aqui em 2011.

Ao recontar a história concebida por Hatoum, Fábio Moon e Gabriel Bá adicionam a mesma intensidade e fineza já demonstradas antes e cravam outro acerto na carreira, que não só honra a obra homenageada, como também agrega novo valor a esta, o que não é muito comum nesses casos. A trama se inicia na Manaus de antes da Segunda Guerra Mundial, nos anos 30, quando os gêmeos Omar e Yaqub brigam entre si com grave resultado e os pais decidem mandar um dos dois para o Líbano para que feridas sejam curadas. O retorno só ocorre depois da guerra e não surte o efeito esperado.

Omar e Yakub tem a própria guerra para travar e no meio dela inserem a mãe Zana, o pai Halim e a irmã Rânia, além de Domingas e o filho, criados na casa com eles. Cada personagem é confeccionado com cuidado redobrado e nenhum é repleto de bondades ou pode ser considerado como um herói. Da malandragem de Omar até a inteligência de Yakub, expõe-se os desejos extremamente protetores da mãe e a raiva contida do pai pelos filhos. Até a doce irmã Rânia que em deliberado momento se apresenta como suporte para a família, também tem segredos e desejos reprimidos.

“Dois Irmãos” terá lançamento no mercado norte-americano e europeu e é uma oportunidade para alavancar ainda mais a carreira dos envolvidos, tendo em vista o zeloso trabalho realizado. Com uma arte de planos abertos, traços límpidos e quadros sem conversa apresenta uma Manaus repleta de vida e de oportunidades, mas ainda sim escorada nos males de toda cidade. Carregada de ambiguidade e tons cinzentos, Fábio Moon e Gabriel Bá se apropriam com autoridade do texto de Milton Hatoum e demonstram que famílias são infelizes cada uma a sua maneira em todo tempo e lugar.

Nota: 8,5

A Companhia das Letras disponibilizou um trecho para leitura, aqui.

Textos relacionados no blog:
- Quadrinhos: “Daytripper” – Fábio Moon e Gabriel Bá

Assista a um vídeo sobre a obra:


quinta-feira, 2 de abril de 2015

"Marvel Comics - A História Secreta" - Sean Howe

Em novembro de 1961 “The Fantastic Four No. 1” era lançada nos Estados Unidos a US$ 0,10. Escrita por Stan Lee e desenhada por Jack Kirby ali se iniciava para valer o Universo Marvel como conhecemos, mesmo que os autores não imaginassem naquele momento quanto suas criações iriam valer e a quantidade de pessoas que iriam atingir. O Quarteto Fantástico foi imaginado como uma resposta para a Liga da Justiça da América da DC Comics, feito sobre as ordens de Martin Goodman, dono da Magazine Management Company, que depois viria se tornar a poderosa Marvel, desde 2009 parte do império Disney e com receitas anuais absurdas.

“Marvel Comics – A História Secreta” (Marvel Comics: the untold story, 2012) narra a história da criação desse colosso do entretenimento desde os anos 30 ainda com outro nome até a já citada venda de 2009. Com lançamento nacional pela Editora Leya em 2013 conta com 560 páginas e um apêndice exclusivo elaborado pelo tradutor da obra Érico Assis relacionando cada história citada com a publicação no país. O autor Sean Howe viaja pelas décadas para contar uma jornada permeada por brigas, desilusões, traições, egoísmo, sorte e, acima de tudo, muita, muita criatividade.

A viagem proposta pelo autor tem a Marvel como foco mas também serve como panorama da indústria dos quadrinhos durante os anos, além de correlacionar outras editoras como DC Comics, Dark Horse e Image Comics como coadjuvantes de luxo. Tem como grande mérito amarrar a criação de personagens clássicos como Homem-Aranha, Capitão América, Thor, X-Men, Quarteto Fantástico, Homem-de-Ferro e Hulk (entre tantos outros) com as decisões editoriais e empresariais por trás de tudo, construindo assim um estudo de caso detalhado sobre normas de mercado e gestão de marcas, relatando todos os atropelos criados pela própria empresa.

“Marvel Comics – A História Secreta” é recheado de casos engraçados e diversos outros de pura picuinha e maldade corporativa. Tem como pano de fundo a briga eterna pela autoria dos personagens, a remuneração por parte do lucro gerado por essas criações e as conquistas que foram alcançadas a passos lentos nessa questão. Apresenta um Stan Lee sem máscara e dotado por uma paixão imensurável pelos quadrinhos, mas que tomou decisões cruéis ou pecou pela omissão em vários momentos, além de focar desde cedo na transposição das obras para o cinema, uma obsessão cega que mostrou acertadamente ser o caminho da salvação.

O grande Jack Kirby é retratado como vítima ao mesmo tempo que tem declarações contestadas pela veracidade dos fatos (como ele ter criado sozinho o Homem-Aranha). Outros artistas importantes como Steve Ditko, Chris Claremont, Neal Adams, Frank Miller e Todd McFarlane são misturados a editores, empresários e milionários em meio a discussões fortes, pedidos de demissões e desilusão com o mercado. Jim Shooter, por exemplo, o manda chuva que salvou a Marvel nos anos 70 mas logo em seguida a afundou em um processo de falta de criatividade, censura e bagunça administrativa que culminaria no pedido de falência dos anos 90, transita por esses dois lados.  

“Marvel Comics – A História Secreta” é daqueles livros que pode tranquilamente carregar o status de imprescindível. É um trabalho robusto gerado em anos de pesquisas e centenas de entrevistas e por mais que não dê tanta atenção aos anos mais recentes da empresa, ainda assim apresenta material para inacabáveis análises e discussões futuras. Há de se considerar também que é um livro de jornalista e não a história oficial da empresa. Essa história foi lançada ano passado lá fora (“75 years of Marvel Comics”), um calhamaço de 700 páginas escrita pelo ícone Roy Thomas, ainda sem edição nacional.

Contudo, uma coisa é certa, depois de acabar o livro de Sean Howe, você nunca mais lerá quadrinhos da mesma maneira. Não mesmo.

Nota: 9,5

Site oficial do autor: http://seanhowe.com

Textos relacionados no blog:
- Literatura: “Will Eisner: Um Sonhador nos Quadrinhos” – Michael Schumacher

A Editora Leya disponibilizou um trecho para leitura. Veja abaixo: