terça-feira, 28 de janeiro de 2020

Literatura: "Ascensão" e "Sobre Os Ossos Dos Mortos"


Castle Rock é uma cidade pequena e provinciana situada nos EUA. Altamente conservadora e satisfeita com suas rotinas e regras, não gosta de nada que altere isso. Scott Carey é um dos seus moradores há algum tempo. Com um divórcio ainda recente, busca se restabelecer e focar no trabalho quando uma coisa para lá de estranha acontece: ele está perdendo peso diariamente, ficando mais leve, no entanto suas medidas não mudam nada e o corpo continua exatamente igual. “Ascensão” (Elevation, no original) é um livro curto de Stephen King lançado em 2018 e publicado aqui no Brasil pela editora Suma no final do ano passado com 130 páginas e tradução de Regiane Winarski. É uma pequena fábula que usa a atualidade (a política americana aparece ao fundo) para versar sobre intolerância, harmonia, preconceito e a finitude da vida e o que fazemos com ela. Quando o protagonista percebe que sua condição não tem saída e os dias na face da terra estão contados opta por deixar um legado ao invés de sair aproveitando os últimos meses. O objetivo é fazer com que o casal de mulheres que passou a residir na cidade e abriu um restaurante seja aceito pela comunidade que ele jurava ser boa, mas desconhecia alguns pensamentos. “Ascensão” não passa nem perto de ser um dos melhores livros do autor, mas traz consigo uma beleza (ainda que triste) e vibração que nos servem bem, ainda mais quando passamos os dias tão absortos em notícias (cada vez mais) ruins.

Nota: 6,0




Uma professora aposentada é chamada por um vizinho que avisa que outro habitante da localidade morreu. Quando chegam lá percebem que o falecimento foi porque ele se engasgou com um osso. Depois que a polícia aparece e começa os procedimentos no meio da neve que cai nessa região isolada da Polônia, a senhora - que não tinha o finado em alta conta - entende que isso se trata de uma vingança dos animais que eram caçados por ele. “Sobre Os Ossos Dos Mortos” (Prowadź Swój Pług Przez Kości Umarłych, no original) foi publicado em 2009 e ganhou edição brasileira dez anos depois pela editora Todavia, com tradução de Olga Baginska-Shinzato e 256 páginas. Na essência um suspense que busca desvendar os assassinatos que aparecem na sequência da morte descrita acima, a obra da vencedora do Prêmio Nobel de Literatura de 2018 caminha em várias outras ruas e atalhos. A escritora polonesa Olga Tokarczuk cria uma protagonista fascinante, que além de não ser afeita a pessoas, se dedica com afinco a astrologia, não come carne, não gosta dos caçadores da região e os sabota quando pode (sejam ilegais ou não), carrega várias efemérides e no meio disso ainda produz argutas reflexões em relação a vida e principalmente a morte. “Sobre Os Ossos Dos Mortos” é um livro que disserta sobre a crueldade com os animais e os direitos desses em troca de uma “tradição”. É estranho, carrega um humor meio macabro nas bordas, faz pensar um pouco e enfeitiça o leitor.

Nota: 8,0

segunda-feira, 27 de janeiro de 2020

Literatura: "Essa Gente" e "Prológo, Ato, Epílogo"


Vencedor do Prêmio Camões de 2019, Chico Buarque lançou outro livro no ano passado pela Companhia das Letras com 200 páginas. “Essa Gente” tem como protagonista um escritor mergulhado em tremenda crise que atinge tanto o lado criativo, como também o amoroso e financeiro. Com o segundo casamento tendo ido para o brejo, o dinheiro acabando, uma relação inerte com o único filho e a incapacidade de escrever um novo romance pelo qual já recebeu alguns adiantamentos, a vida está na beira de um colapso. Usando o Rio de Janeiro atual como palco para contar essa história, Chico Buarque aproveita e insere a cada capítulo retratos claros de um Brasil governado pelos ineptos e energúmenos de hoje em dia e sua relação direta com a violência e intolerância que saiu do esgoto das redes sociais para o dia a dia do convívio, além, é claro, da violência física em si. Escrito quase que em forma de diário, o autor apresenta a queda do escritor Manuel Duarte alternando - como de costume em seus livros - realidade com imaginação e delírio. O resultado é melhor que os últimos trabalhos (“O Irmão Alemão” de 2014 e “Leite Derramado” de 2009) e expressa um autor em boa forma, ainda que sempre se espere algo extraordinário por ser quem é.  Indo além do personagem principal, “Essa Gente” se destaca mesmo é pelos coadjuvantes pequenos que de uma forma ou outra representam bem o tipo de pessoa que nos colocou no buraco em que estamos.

Nota: 7,5




Nunca existiu mulher como Fernanda Montenegro no Brasil. A atriz é daquelas artistas únicas que possuem um legado enorme e que além de serem imensos em termos de qualidade se tornaram igualmente ícones de uma geração, de um ofício. Seja no teatro ou no cinema (e até mesmo na televisão), foram milhares aqueles que sorriram, choraram e se emocionaram ao ver um trabalho seu. Em “Prólogo, Ato, Epílogo” publicado no ano passado pela Companhia das Letras com 392 páginas ela conta com a colaboração da Marta Góes para versar um pouco sobre esses 90 anos de vida, sendo a esmagadora parte deles dedicado a arte, a paixão por atuar. De maneira terna e afável, mas não menos forte e contundente, a autora conta sobre a infância, os antepassados, as primeiras apresentações, o amor eterno pelo companheiro Fernando Torres, os perrengues para se fazer teatro no Brasil desde sempre, as viagens, as desilusões políticas e sociais, os anos de ditatura militar, a garra de sempre promover um novo espetáculo, uma nova peça, a glória e o reconhecimento. Sempre tendo as transformações do nosso país consideradas passo a passo com reflexões curtas sobre cada momento e desdobramento, a leitura dessa biografia é daquelas que a cada página virada temos um novo deslumbre, uma nova comoção, um novo ensinamento. Dona de uma memória incrível, temos casos antigos apresentados com detalhes e a todo momento levando em conta a finitude do tempo que temos por esse plano. Um livro primoroso de uma vida gigantesca.

Nota: 9,0

sexta-feira, 3 de janeiro de 2020

Séries: "Inacreditável", "Carnival Row" e "The Mandalorian"


2008. Aos 18 anos, Marie Adler (Kaytlin Dever) é amarrada e estuprada dentro da própria casa. Quando a polícia entra em ação ela se vê obrigada a recontar o acontecido várias e várias vezes, até que ao ser interrogada por dois policiais bem mais velhos que esbanjam ceticismo e descrença, ela acaba saindo desnorteada botando em dúvida o que lhe aconteceu. Logo depois, cancela a versão, diz que mentiu e é processada pela prefeitura por falso testemunho, o que lhe causa problemas em todas as esferas. Pulamos para 2011. Em outra cidade a detetive Karen Duvall (Merritt Wever) se depara com um caso de estupro e junta forças com a experiente Grace Rasmussen (Toni Collette). Juntas começam a ligar peças e descobrem a existência de um estuprador em série atuando há tempos na região. Esses são os pontos de partida de “Inacreditável” (Unbelievable, no original), série do Netflix de 8 episódios que estreou em setembro de 2019 na plataforma. Baseada em uma história real que aconteceu nos EUA e rendeu livro e um artigo vencedor do Pulitzer, a trama é cheia de reviravoltas e tensão e coloca no telespectador aquela sensação de revolta que a cada capítulo aumenta mais e mais. Além de ser realmente bem intensa, é sustentada pelo trio de atrizes já citadas que fazem um trabalho exuberante dosando dor, força e confiança da maneira ideal para cada personagem. “Inacreditável” é mais um retrato de um sistema totalmente despreparado para lidar com a violência as mulheres e que muitas vezes está pouco se lixando, essa é a verdade. Por isso é tão necessária.

Nota: 8,0

Depois de assistir a todos os episódios, leia o artigo vencedor do Pulitzer que deu origem a série: https://www.propublica.org/article/false-rape-accusations-an-unbelievable-story 


“Carnival Row” é uma série de fantasia em 8 episódios lançada no segundo semestre do ano passado. Com produção da Amazon Prime Video e disponibilizada integralmente na plataforma foi criada pelo René Echeverria (da saudosa “The 4400”) em conjunto com Travis Beacham (roteirista de “Círculo de Fogo”). Nela, homens e fadas lutaram lado a lado há poucos anos. No entanto, perderam a guerra e por conta disso as terras das fadas e de outras criaturas fantásticas ficaram nas mãos do Pacto, que continua espalhando terror, extraindo riquezas e escravizando seres, mesmo depois de findadas as batalhas. A cidade do Burgo - considerada a maior desse lado da terra - abriga não somente os humanos perdedores, como também milhares de refugiados de todos os lugares e raças. No meio disso um romance construído na guerra composto pelo inspetor de polícia Rycroft Philostrate (Orlando Bloom) e a fada refugiada Vignette Stonemoss (Cara Delenvigne) tenta sobreviver. Espalhada em tramas paralelas bem interessantes, “Carnival Row” se destaca com muito mais impetuosidade longe do foco principal. Além de efeitos visuais consistentes e uma vistosa fotografia é quando faz vínculos diretos a realidade dos nossos dias que acerta o alvo. O preconceito desmesurado e irracional, a violência e crueldade com os refugiados, uma polícia que escolhe quem vai defender e uma sociedade hipócrita que prega uma coisa e faz outra engatam essas subtramas em atuações quase perfeitas de outros nomes do elenco como Tamzin Merchant, Simon McBurney e Karla Crome. O avassalador episódio final deixa ainda um gancho imenso a ser explorado na segunda temporada, além daquele desejo de quero mais.

Nota: 8,5



Em “O Despertar da Força” de 2015 deixaram a gente sonhar com um belo filme. Em 2017 com “Os Últimos Jedi” serviram um prato comestível, mas com pouco sabor. E em 2019 com “A Ascensão Skywalker” jogaram praticamente tudo no lixo em uma produção fraca e sem emoção alguma. Dito isso, nesse final de década não é esforço afirmar que a melhor coisa que Star Wars entregou nesse período é disparada a série “The Mandalorian”. Entre novembro e dezembro de 2019 foi exibida pelo canal Disney Plus (e está inédita no Brasil), sendo produzida pela Lucasfilm Ltd. sob a batuta e orientação do cada vez mais extraordinário Jon Favreau. Do time de diretores escolhidos (Deborah Chow, Rick Famuyiwa, Dave Filoni, Bryce Dallas Howard e Taika Waititi) até os pequenos detalhes que fazem relação com a história da franquia, tudo é um grande regalo. Ambientada entre os filmes “O Retorno do Jedi” e “O Despertar da Força”, ou seja, após a queda do Império e antes do surgimento da Primeira Ordem, temos o protagonista (interpretado por Pedro Pascal), um esquivo caçador de recompensas, cortando o espaço atrás de dinheiro até que uma pequena criança entra no seu caminho. Essa criança (que já virou febre e foi apelidada de Baby Yoda pelos fãs) é a razão da série existir. Em sua caça está um ex-governador do antigo regime e o mandaloriano precisar ser menos solitário e fazer alguns amigos. Concebida com excelência técnica, ritmo, magia, aventura, personagens novos realmente legais, respeito ao passado e bom humor, “The Mandalorian” é um acerto memorável da Disney. Até que enfim.

Nota: 9,0

Assista aos trailers:




quinta-feira, 2 de janeiro de 2020

Séries: “His Dark Materials: Fronteiras do Universo”, "The Witcher" e "Watchmen"


Desde que o filme “A Bússola de Ouro” foi lançado em 2007 que os fãs da obra do escritor Philip Pullman esperavam por uma sequência ou uma nova adaptação. A sequência não veio (ainda bem), mas a obra virou série pelas mãos da HBO em parceria com a BBC e está disponível no canal desde novembro do ano passado. “His Dark Materials: Fronteiras do Universo” apresenta 8 episódios adaptados pelo roteirista Jack Thorne (de filmes como “Extraordinário”) e contando com diretores como Tom Hooper (de “O Discurso do Rei”) no rol dos contratados. A história tem a jovem e destemida Lyra (Dafne Keen) como protagonista e retrata um universo paralelo ao nosso que é comandado de maneira bruta e opressora pelo Magisterium, uma organização com um poderoso braço armado que usa a religião como forma de se perpetuar no poder. Neste mundo onde ciência e magia às vezes andam de mãos dadas e em outras são ferrenhas opositoras, Lyra se mete em uma jornada de busca a um amigo desaparecido que é repleta de perigos, aprendizados e descobertas pessoais. Com um elenco recheado de bons atores como Ruth Wilson, James Cosmo, Lin-Manuel Miranda e James McAvoy, a HBO faz uma produção bem ao seu estilo, com tons escuros e indo bem nas questões técnicas, apesar dos efeitos visuais deixarem um pouco a desejar quando são mais necessários. Contudo, a forma que a história é contada é lenta demais, arrastada demais e isso faz com que o telespectador saia dessa primeira temporada sem se envolver completamente, e, principalmente, sem a certeza de que encarará a segunda.

Nota: 6,0


Geralt de Rivia é um bruxo solitário. Anda pelo mundo a esmo oferecendo seus serviços que consistem em matar criaturas e monstros em troca de dinheiro. Porém, às vezes as coisas não saem como deveriam e aceita um trabalho que não é o que parece, outro que paga mal, outro que não quer e acaba pegando, outro que nem é pago e assim vai. Ser autônomo não é fácil, sabemos disso. “The Witcher” foi criado nos anos 80 pelo escritor polonês Andrzej Sapkowski e anos depois estourou nos games, passou pelos quadrinhos, retornou a literatura e no final de 2019 ganhou série na Netflix com 8 episódios disponibilizados de uma vez só na plataforma, que mostram a rotina descrita no início do texto. Interpretado pelo Henry “Superman” Cavill de maneira às vezes com excelência, às vezes bem canhestra, a série apresenta cada episódio meio que fechado em si com um novo conto, um novo desafio, enquanto aos poucos constrói a trama principal e apresenta o universo. Com dois impérios em guerra no decorrer dos episódios o protagonista descobre sobre o passado, se apaixona, faz algumas promessas, escapa da morte e aumenta o volume de inimigos. Com ótimas cenas de luta, bons efeitos visuais no que tange aos monstros e demais seres, outros personagens com destaque como a Yennefer da atriz Anya Chalotra (que rouba a cena), bom humor e uma maneira não tão óbvia de confrontar presente e passado na trama, “The Wicther” é o tipo de série que cumpre o papel de entreter bem, sem maiores preocupações ou ambições. E parece confortável com isso.

Nota: 7,0


“Watchmen” de Alan Moore e Dave Gibbons é daquelas obras capazes de mudar as coisas. Ao lado de outras da mesma época redefiniu (para o bem e para o mal) o conceito de super-heróis e ganhou status de “intocável”, o que na cultura pop não quer dizer praticamente nada, convenhamos. Em 2009 o diretor Zack Snyder fez um filme bem fiel, os quadrinhos já revisitaram a história (e continuam revisitando), enfim, vida que segue. Nessa vida está “Watchmen”, série produzida pela HBO e idealizada por Damon Lindelof (criador de “Lost”) que conta com 9 episódios. Recentemente finalizada, manifesta como enredo um mundo imaginado mais de 30 anos depois dos eventos finais da graphic novel que culminaram com a morte de 3 milhões de pessoas. Com um elenco magistral com nomes do porte de Regina King, Jeromy Irons, Tim Blake Nelson, Louis Gossett Jr., Jean Smart e Hong Chau, a produção exibe uma robusta pegada política e social que funciona demais como uma nova história, sendo intrinsicamente ligada ao mundo de hoje e ao momento em que vivemos, retratada principalmente nos ideais estapafúrdios de supremacia branca da Sétima Kavalaria (inspirados em Rorschach e filha direta da abominável Klu Klux Klan), sendo que isso já torna bem recomendável assistir. No entanto, nem tudo são flores, e se analisarmos friamente em relação a relevância do trabalho para o mundo visualizado por Alan Moore originalmente, não se constata maiores patamares de importância. E nesse limbo entre ser uma continuação ou um remix – como o próprio Lindelof já definiu – é que Watchmen vai bem menos longe do que poderia alcançar.

Nota: 7,5

A HBO fez um site explicando vários fatos: https://www.hbo.com/peteypedia

Assista aos trailers: