domingo, 15 de novembro de 2015

Literatura: "Um Homem Chamado Ove" e "Oeste - A Guerra do Jogo do Bicho"

 

A vida atual deixou algumas coisas para trás, normal, isso acontece de tempos em tempos. Uma dessas coisas que ficaram no passado é a habilidade de consertar algo quando quebra, de construir alguma coisa com as próprias mãos quando preciso, de aprender serviços manuais corriqueiros de manutenção. Ou nós contratamos alguém para fazer isso ou trocamos imediatamente aquilo que quebrou. Isso incomoda bastante Ove, o personagem central do livro “Um Homem Chamado Ove” (En Man Som Heter Ove, no original) do sueco Fredrik Backman. Primeiro romance deste jornalista foi publicado na terra natal em 2012 e virou sucesso editorial com mais de 600 mil cópias vendidas, tradução para vinte e tantos países e início de adaptação para o cinema. O selo Alfaguara da Editora Objetiva publica aqui esse ano este romance com 352 páginas e tradução de Paulo Chagas Souza. Ove, o protagonista, tem 59 anos e é completamente avesso a conversinhas, bate-papos e futilidades. Para ele tudo é bastante direto e muito simples, o que acaba por lhe dar um entendimento bem peculiar sobre diversos assuntos. Sua única preocupação no momento é conseguir morrer, se matar. Sim, isso mesmo. Desde que a esposa faleceu e ele foi aposentado pela empresa que dedicou vários anos de bons serviços, não encontra mais nada que indique valer a pena levantar da cama. Se dedicando com afinco a esse projeto de suicídio sempre é interrompido por algum vizinho maluco (na sua concepção, lógico) e após sucessivas tentativas frustradas as coisas vão mudando um pouco de aspecto. O protagonista criado pelo autor é honesto acima de tudo, com um senso de justiça forte, robusto como um touro, mas que tem pensamentos não muito confortáveis sobre questões como imigrantes e cor da pele, por exemplo. Justificável pela maneira como foi criado, assim se demonstra nas páginas do livro que recortam presente e passado, serve para expor também, por conseguinte, o pensamento do autor em questões delicadas que até servem de desafogo para algumas boas piadas, mas incomodam em certa quantia. “Um Homem Chamado Ove” é um livro sobre seguir em frente, sobre como as pessoas podem se transformar se tiverem outras ao redor, sobre o poder da compaixão e da bondade sem interesses. Além disso, é um livro sobre o amor universal de duas pessoas durante toda uma vida, coisa tão rara hoje em dia como as habilidades descritas no início do texto.

Nota: 6,0

Leia um trecho, aqui.


É muito improvável que em algum momento da vida você não tenha deparado com alguma banquinha no meio da rua ou na frente de um bar com uma tabela cheia de números e uma pessoa riscando uma pequena caderneta de papel. O jogo do bicho, criado no final do século 19 no Rio de Janeiro, existe por todo o país, e, mesmo hoje ainda exibe muita força e faturamento elevado. Uma contravenção pela lei, é suportado por governos que, não obstante, retiram dele algum tipo de propina para consentimento, assim como os órgãos de segurança. O jogo é o segundo maior arrecadador de apostas do país atrás apenas da Mega-Sena e age com milhares de cambistas operando, sem pagar impostos e fabricando impérios. O escritor Alexandre Fraga aborda esse mundo em “Oeste – A Guerra do Jogo do Bicho”, lançado ano passado pela Editora Record com 308 páginas. O autor tem dois outros romances no currículo, “Quando os Demônios Vão ao Confessionário” de 2002 e “Canibal de Copacabana” de 2008, e é policial federal e bacharel em Direito. Inspirado em fatos reais, principalmente na guerra do jogo do bicho iniciada no Rio de Janeiro nos anos 90 com a morte de Castor de Andrade, Alexandre Fraga amplia as linhas temporais e imaginárias criando um bom thriller policial com drama, muita violência e algum humor. A trama inicia quando Nabor, o chefe maior dos bicheiros do estado, sai da cadeia e começa a retomar o poder. Quando de súbito falece, a briga pela sucessão ganha tons de sangue. Na ampliação dos negócios para além do jogo escrito em papel (que agora é feito também em máquinas eletrônicas), com a inclusão dos rentáveis caça-níqueis que vendem ainda mais a ilusão do dinheiro fácil e rápido, se apresenta uma guerra sem fim pelo poder e por territórios. Muitos dos fatos explorados em “Oeste” realmente aconteceram e os pseudônimos utilizados no livro são facilmente identificáveis. Com os direitos vendidos para o cinema e comparações (menos, menos) com “O Poderoso Chefão” de Mario Puzo, a obra flui muito bem, com ritmo acelerado e excelentes personagens como o advogado gago Estélio e o assassino de aluguel Já Morreu. Alexandre Fraga sabe do que está falando e vai bem ao ilustrar um negócio que atua aos olhos do povo, mesmo sendo contra a lei e não gerando frutos diretos ao estado, sendo baseado em propinas e agrados. No entanto, bem que a revisão do livro podia ser mais cuidadosa. Ajudaria mais.

Nota: 7,5

quinta-feira, 12 de novembro de 2015

Quadrinhos: "Aurora" e "Punho de Ferro: A Arma Viva – Vol. 1”

 
Sites de financiamento coletivo são atualmente grandes aliados para os quadrinhistas nacionais com vários projetos nascendo ali. “Aurora” é mais um exemplo disso, porém tem uma pequena diferença, uma vez que o criador do argumento e do roteiro é o ator Felipe Folgosi. De galã jovem global dos anos 90, esse fã de quadrinhos hoje atua em produções bem questionáveis como as novelas “Os Mutantes” e “Chiquititas”. Com formação em Cinema e especialização em Los Angeles, inicialmente Felipe Folgosi concebeu “Aurora” como um roteiro de cinema, só que como para filmar um projeto com esse teor não é lá muito fácil resolveu migrar para os quadrinhos. Com a produção do Instituto dos Quadrinhos e o apoio do crowndfunding a obra chega às livrarias e bancas do país. Mesmo ostentando somente o nome do ator na capa, o álbum foi adaptado por Klebs Junior que também armou os layouts para os desenhos de Leno Carvalho. A trama é de ficção científica e apresenta nosso planeta passando por um fenômeno que desenhará o próximo passo evolutivo da humanidade. O protagonista é Rafael, um pescador que é absorvido por esse fenômeno e passa a desenvolver certos poderes e habilidades. Logo o governo vem ao seu encalço, não medindo esforços para tanto e eliminando quem se colocar no caminho. Com uma ideia promissora para ser desenvolvida em hq’s nacionais, “Aurora” peca bastante no ritmo e na aplicação das ideias, como a pressa desmesurada para chegar a um diagnóstico para o personagem principal que surge tão exato e didático que não cai bem. O uso da religião em contraponto a ciência também não funciona e outro ponto negativo é a arte. Se nos planos mais gerais ela corresponde, deixa a desejar em vários momentos nas feições retratadas para o momento que se apresenta, ficando frágil a passagem de quadrinho para quadrinho. “Aurora” tem seu valor, porém exibe muitas falhas e a principal delas é não exprimir emoção suficiente para envolver o leitor.

Nota: 5,0

O Punho de Ferro foi criado por Roy Thomas e Gil Kane e estreou em uma revista de 1974. Foi criado para aproveitar o sucesso dos filmes marciais da época, mas é coerente afirmar que mesmo vivendo com o ostracismo em alguns momentos, o personagem conseguiu ir além disso. Punho de Ferro é na verdade o empresário Daniel Rand, que junto com heróis como Demolidor, Luke Cage e Justiceiro faz parte do universo mais urbano da editora. Não é à toa, por exemplo, que a Netflix também irá produzir uma série sua assim como fez com Demolidor e Jessica Jones e fará com Luke Cage. Todos fazem parte do mesmo micro universo. A Panini Comics lança agora uma edição cartonada com 130 páginas chamada “Punho de Ferro: A Arma Viva – Vol. 1”, reunindo as edições de 1 a 6 de “Iron First: The Living Weapon” publicadas nos EUA entre junho e novembro do ano passado contendo a fase recente do personagem. Sob o comando de Kaare Andrews (de “Doutor Octopus: Origem”) no roteiro e na arte, a história apresenta um Punho de Ferro mais fechado, de poucas palavras e com tormentos constantes lhe tirando o sono. Recorta então a atualidade de um ataque que sofre em seu apartamento e lhe direciona novamente para Kun Lun, a cidade que lhe fez ser o que é, com fatos do passado que adicionam novos elementos na origem que já conhecida. O tratamento que Kaare Andrews dá ao Punho de Ferro é louvável e consegue o objetivo de trazer nova vida a um personagem mal utilizado na maior parte do tempo. A arte desfocada, escura e brutal é um bom adendo a trama. Se ainda não supera a estupenda fase comandada pela dupla Ed Brubaker e Matt Fraction há alguns anos no mundo pós-Guerra Civil da Marvel, tem suas virtudes e se manter a toada das primeiras edições pode render algo muito bom no futuro.

Nota: 7,5


domingo, 8 de novembro de 2015

Literatura: "Trash" e "A Garota da Banda"


Ano passado o diretor Stephen Daldry de filmes como “Billy Elliot” e “As Horas” lançou sua versão cinematográfica para o romance juvenil “Trash”. Gravado no Brasil e com atores nacionais no elenco como Wagner Moura e Selton Mello, o longa é adaptado da obra do inglês Andy Mulligan originalmente publicado em 2010. Em 2013 a Cosac Naify colocou aqui esse trabalho (que ganhou reimpressão em 2014) com tradução do escritor Antônio Xerxenesky e 224 páginas. O livro tem como protagonista o jovem Raphael Férnandez que vive no lixão de Behala e de lá tira o sustento em situações nada magníficas. O autor, que também é professor, não ambienta a trama em um país específico, mas tirando pelas suas andanças por Índia, Filipinas, Vietnã e Brasil, pode-se afirmar que tem um pouco de cada nessa criação. Ao fazer seu trabalho revirando o lixo para separar e revender, o personagem principal se depara com um bolsa contendo dinheiro e mais alguns importantes papéis. O que à primeira vista representa um grande prêmio, se revela como algo bem mais grave quando a polícia invade o local preocupado em encontrar essa bolsa. Quando esconde da polícia esse fato e percebe que o buraco é bem mais embaixo, Raphael se vê em uma grande aventura junto com os amigos de lixão Gardo e Rato. Dentro desse contexto, Andy Mulligan versa pelo caminho sobre pobreza, abuso de poder, política e desigualdade social, usando como recurso narrativo a voz não somente de Raphael, mas de vários envolvidos que vão assumindo os capítulos e que ajudam a dar uma boa visão ao leitor, ainda mais com a utilização de fontes distintas para cada pessoa. “Trash”, no entanto, é apenas uma aventura razoável, que não consegue se expandir muito do raso raciocínio e expõe o olhar estrangeiro caricato sobre as mazelas dos países do terceiro mundo. Sim, é repleto de boas intenções, porém fica somente nisso e não vai muito além como leitura.

Nota: 6,0


Em 14 de novembro de 2011 o Sonic Youth subia no palco do Festival SWU na cidade paulista de Paulínia para fazer o último show de uma carreira de 30 anos artisticamente impecável. Ali seria a derradeira vez em que a banda executaria canções como “Sugar Kane”, “Teenage Riot” e “Death Valley 69’”. E é nesse show que a baixista Kim Gordon começa sua autobiografia. De maneira triste, arrasadora e assustadoramente honesta narra os últimos dias que culminaram na apresentação em um capítulo que é tão brusco que a emoção toma conta. Kim Gordon é muito mais que uma música. É artista visual, atriz, diretora, produtora, empresária. Uma mulher e tanto, mas que como a maioria de nós pobres mortais tem dúvidas, medos, vergonhas e arrependimentos. “A Garota da Banda” (Girl in a Band, no original) foi publicado esse ano e sai por aqui também em 2015 pelo selo Fábrica231 da Editora Rocco, com tradução conjunta de Alexandre Matias e Mariana Moreira Matias e 288 páginas. O livro de Kim Gordon é como um romance torto de formação em que o Sonic Youth é responsável por vários capítulos, mas ainda assim é coadjuvante da vida pessoal da autora que passeia por uma Nova York que não existe mais e por entre nomes distintos de vários setores da arte. Expondo pensamentos sobre pessoas do meio musical como Courtney Love e, lógico, o marido Thurston Moore, entre tantas outras, Kim Gordon apresenta ao leitor um retrato de uma personalidade forte por mais que sempre tenha sido meio intimista. É um retrato de uma mulher que tocou a vida em meio a um mundo e a um meio claramente machistas, mas que se saiu muito bem. Uma mulher que optou em fazer uma música não convencional em uma época em que, como ela própria diz no livro, a palavra ruído era um insulto, a coisa mais desprezível que podia se usar contra a música. “A Garota da Banda” é um livro avassalador, para se ler mais de uma vez e depois guardar ali na estante ao lado de “Só Garotos” da Patti Smith.

Nota: 9,5

quarta-feira, 4 de novembro de 2015

"Beasts Of No Nation" - 2015

São inúmeras as guerras civis que explodiram no continente africano nas últimas décadas. Exemplos não faltam em países como Ruanda, Mali, Nigéria, Somália, Congo. A lista é extensa e ainda nesse momento existem facções rivais se digladiando em uma nação do continente enquanto o resto do mundo finge não ver. Uma história triste e complexa de se entender, mas que geralmente tem um ditador cometendo desmandos enquanto alguma frente rebelde denominada de libertação, salvação ou coisa do tipo busca derrubá-lo, para que depois ao conseguir o poder pratique necessariamente os mesmos atos.

“Beasts of No Nation” é o primeiro filme produzido pela Netflix e tem como cenário justamente uma guerra civil dessa. Baseado no livro antônimo do nigeriano Uzodinma Iwela lançado em 2005, o longa estreou mês passado e está disponível na plataforma da empresa. Com isso, a Netflix dá mais um passo na consolidação dentro de um vasto mercado que agora também abrange a produção de filmes depois de apresentar documentários e séries, como também uma afirmação no que concerne ao quesito qualidade, rivalizando mais do que nunca com a HBO nessa seara.

Com 2 horas e 17 minutos o filme conta com a direção de Cary Joji Fukunaga, que tem no currículo o bom “Jane Eyre” de 2011 e, acima disso, os oito episódios da aclamada primeira temporada de “True Detective”. Em “Beasts of No Nation” ele faz um grande trabalho. Com a câmera ágil, concentrada muito nas feições dos atores e balanceando com perícia ritmo e contemplação, traz o espectador para a tensa e dolorosa história que apresenta. Merece também destaque a edição e montagem conjunta de Pete Beaudreau (“Margin Call – Antes do Fim”) e Mikkel E. G. Nielsen (“Querida Wendy”).

O roteiro, também adaptado pelo diretor, tem Agu como narrador, porta-voz e olhos do espectador. Ganês, descoberto nas locações do filme, o jovem Abraham Attah impressiona pela desenvoltura. Agu é parte de uma família como qualquer outra, traquina e moleque como a idade permite. Está com os pais e irmãos no meio de uma zona de proteção durante a guerra civil declarada em seu país (que o roteiro não especifica qual), até que essa zona de proteção é invadida e ele vê a mãe fugir para outra cidade e o pai, avô e irmão serem assassinados na sua frente pelas forças do governo.

Ao fugir pela selva é encontrado pelas tropas do “Comandante” (Idris Elba das séries “The Wire” e “Luther” dando um show) e logo é recrutado para ser mais um soldado de guerra. De início, com todo ódio que tem coração, Agu busca vingança, mas também um lugar para ficar, ainda mais contra aqueles que mataram sua família. Na segunda metade do longa, percebe que atrocidades são cometidas pelos dois lados e em uma guerra vilões se espalham entre as fileiras, até devido a própria transformação que sofre passando de um alegre e brincalhão garoto para mais um insano a tirar vidas da população que paga o pato pela busca sangrenta de poder.

“Beasts Of No Nation” tem uma gama de qualidades a serem elencadas. O drama de guerra é conciso, violento, nada apelativo ou banal. Contudo, também explora a psique daqueles homens que se veem arremessados em uma matança sem fim, além de criticar ações do tipo e toda política suja de interesses envolvida nesses casos. Tecnicamente bem feito, com um diretor que apresenta um talento maior a cada trabalho e ótima atuação da dupla principal de atores, é um filme que representa um marco para a Netflix, e quem sabe, um pouco mais além (o filme está cotado para o Oscar do próximo ano).

P.S: A título de curiosidade, “Beasts of No Nation” é também o nome de um disco lançado pelo músico nigeriano Fela Kuti em 1989. Vale a pena conhecer.

Nota: 9,0

Assista a um trailer legendado: