terça-feira, 29 de julho de 2014

“Man On The Run - Paul McCartney nos Anos 1970” - Tom Doyle

 
Você fez parte da maior banda que o mundo já viu até então. Alcançou um sucesso nunca visto antes no mundo da música. Virou do avesso todas as concepções de entretenimento e marketing cultural. Cativou um público imenso e fez discos aclamados por esse público, como também pela crítica. Ganhou muito dinheiro. No entanto, tudo isso acabou. Tudo isso chegou ao fim. Por vários motivos como convivência, falta de tesão, egos enormes, influência de terceiros, disputas internas. Na verdade, não importam muito os motivos, o que importa é que as coisas terminaram. E agora? O que fazer?

Foi nessa situação que Ringo Starr, George Harrison, John Lennon e Paul McCartney se encontravam no começo dos anos 70 com o fim dos Beatles. Mesmo que o fim da banda fosse inevitável de várias maneiras, ficou esse sentimento do que fazer depois de tudo. O conceituado jornalista inglês Tom Doyle (Q Magazine, The Guardian, Mojo) apresenta o desenrolar dessa história pelos anos 70 para um dos envolvidos no livro “Man On The Run – Paul McCartney nos Anos 1970”, que a Editora Leya lançou por aqui no primeiro semestre desse ano com 336 páginas e tradução de Paulo Polzonoff.

Publicado no exterior no ano passado, o livro tem partida ainda no final dos Beatles e se estende até os primeiros passos dos anos 80, sendo que esse final chega precedido da prisão de Paul no Japão por posse de maconha e do assassinato de John Lennon em dezembro de 1980. Esses pontos, aliás, são muito bem explorados no registro. A questão da maconha e a paixão do músico e seus cúmplices por ela, como também o conturbado e abstruso relacionamento com o parceiro e amigo dos tempos de Beatles que trafegava entre a rispidez pública e o carinho privado externado em conversas telefônicas e reuniões de casais.

“Man On The Run – Paul McCartney nos Anos 1970” apresenta ao leitor uma pessoa talentosa e ainda jovem que, em tese, teria o mundo nas mãos mas vê isso acabar (com uma boa carga de culpa, diga-se) e fica sem rumo, sem objetivos. A separação até pelos fatos que a sucederam com declarações ácidas dos envolvidos e brigas judiciais pela finitude também da sociedade do grupo afetaram profundamente Paul McCartney que se não fosse o suporte da mulher, como ele próprio admite várias vezes, teria sido inimaginável sair disso como saiu. Linda, sua primeira esposa, além de companheira foi a alavanca que novamente o impulsionou adiante.

O livro percorre um caminho cheio de dúvidas, afirmações, questionamentos e inseguranças, mas também de aprendizado, crescimento, admissão de falhas, excentricidades e sorrisos. Com o final dos Beatles, Paul e Linda passam a viver como hippies praticamente em uma fazenda escocesa. Depois dos álbuns “McCartney” de 1970 e “Ram” de 1971, o intuito do artista era ter novamente um grupo e assim nasceu o Wings que contava na primeira formação com sua esposa Linda nos teclados (motivo de várias broncas), Denny Laine (ex-Moody Blues) na guitarra, Denny Seiwell na bateria e Henry McCullough na outra guitarra.

Dentre as inúmeras formações que o grupo teve até também sucumbir no início dos anos 80, essa provavelmente foi a melhor, trabalhando nos primeiros discos “Wild Life” de 1971 e “Red Rose Speedway” de 1973, onde McCartney ainda reaprendia o ofício da composição, por assim dizer, assim como no magistral “Band Of The Run” de 1973, que novamente alçou seu nome a condição de antes e convenceu os críticos de que ele ainda tinha muita lenha para queimar, fato comprovado pelo álbum seguinte, “Venus And Mars” de 1975 e composições como “Live And Let Die” feita para o filme “007 - Viva e Deixe Morrer” de 1973.

Um dos aspectos mais eficientes de “Man On The Run – Paul McCartney nos Anos 1970” é que Tom Doyle faz um trabalho jornalístico exemplar não se eximindo de tratar de questões espinhosas e sem mitificar mais ainda o mito. Pelo contrário, expõe fraquezas diversas como a relação do artista em relação ao dinheiro, a imposição de suas ideias perante os demais, as excentricidades pouco comentadas e a relação com drogas dentro do seu nicho de convívio. Uma elogiada posição perante tantas biografias insípidas e sem graça que só servem para louvar o biografado. Fica claro que Tom Doyle admira o trabalho de McCartney, mas isso não o impede de cutucar algumas feridas, o que só aumenta o valor do trabalho.

P.S: Além de histórias saborosas (e dolorosas), Tom Doyle ainda adiciona no final uma detalhada discografia e apresentações do período.

Nota: 8,5

A Editora Leya disponibilizou um trecho para leitura aqui:

Na foto abaixo, o Wings faz pose na primeira turnê:

segunda-feira, 28 de julho de 2014

“A Extraordinária Viagem do Faquir Que Ficou Preso em Um Armário Ikea” - Romain Puértolas

Um faquir é uma pessoa que executa feitos de resistência ao corpo humano desprezando qualquer sensação física e que acredita no trunfo do espírito e no poder da mente sobre o corpo, assim nos explica o dicionário. Quando a imagem se associa a palavra, é comum imaginarmos logo aquele indivíduo magro, que encanta serpentes com uma flauta, faz jejum, deita sobre uma cama de pregos, engole espadas ou anda sobre cacos de vidro. Para alguns, são pessoas com dons sobrenaturais, dons mágicos. Para outros, são pessoas com extremo domínio do corpo e da mente.

O indiano Ajatashatru Ahvaka Singh, personagem principal do romance “A Extraordinária Viagem do Faquir Que Ficou Preso em Um Armário Ikea”, porém não se enquadra em nenhum desses casos citados. O livro, escrito pelo francês nascido na cidade de Montpeliier, Romain Puértolas, foi originalmente publicado no seu país natal e virou um best seller por lá, ganhando tradução para vários outros países. Lançado genuinamente em 2013, recebeu edição nacional esse ano através da Editora Record, com 256 páginas e tradução de Mauro Pinheiro.

A trama consiste na viagem do referido faquir para a França com o intuito de comprar uma nova cama de pregos na gigante multinacional sueca do ramo de móveis, a IKEA. Para que essa pequena aventura se tornasse possível ele engana a população do vilarejo em que mora para que eles banquem a passagem de ida e volta e assim desce no aeroporto munido de uma nota de cem euros falsa no bolso para efetuar a aquisição. Sim, percebe-se aqui, que Ajatashatru Ahvaka Singh é um enganador e um golpista e não possui nada de extraordinário além da sua patifaria e esperteza. Sempre foi assim, apesar de uma infância complexa, que o autor sem muita razão coloca mais adiante.

Como o título parcialmente entrega, dentro da loja na França ele consegue ficar preso em um armário e assim viaja por múltiplas outras nações como Inglaterra, Espanha, Itália e Líbia se metendo em confusões e revendo seu modo de ser e de agir. E é nesse quesito de repensar a vida que “A Extraordinária Viagem do Faquir Que Ficou Preso em Um Armário Ikea” se perde completamente e vira óbvio demais. Enquanto foca na comédia inicial o autor consegue atrair a atenção do leitor, por mais que a história em si não seja nada sensacional, cumpre a missão de divertir. Todavia, antes de chegar à segunda metade ele já perde a mão e assim vai ladeira abaixo.

Além de insistir no fato de transformar a comédia em uma viagem de redescoberta (e acaba não sendo nem uma coisa nem outra), a repetição das piadas faz com que a graça se dissipe no decorrer das páginas. Bons artifícios como a brincadeira com os nomes dos personagens, assim como dos costumes dos povos apresentados, perdem a força por conta disso. Um ponto bem positivo que é expor o problema da imigração ilegal na Europa, tanto nas suas diretrizes quanto no tratamento dos imigrantes, fica meio de lado pela falta de pulsação do texto. Por conta disso, a estreia do autor fica muito parecida com Ajatashatru Ahvaka Singh, engana, mas no final não cumpre bem o objetivo a que se destina.

Nota: 5,0


terça-feira, 22 de julho de 2014

"Ditadura da Felicidade" - Aeroplano

Veja bem, você está gordo, tem que emagrecer. Não é somente uma questão de saúde, mas você precisa se adequar as normas e regras atuais da nossa sociedade. Você não vê as fotos no Facebook ou no Instagram diariamente? Pessoas “treinando” loucamente em academias atrás desse biotipo ideal. Ah, você tem que sair mais também. Ser mais social. Sorrir para todos, mesmo quando não quer, faz parte do processo. E por fim, era bom cortar o cabelo, fazer a barba diariamente e usar roupas melhores, uma camisa pólo cairá bem em você, e isso “com certeza” lhe ajudará a achar o caminho da felicidade.

Pois é. Não tem mais saída. Temos que ser felizes a todo custo, a toda hora e entrar no modus operandi da sociedade em geral, mesmo que você seja feliz do seu jeito e que não esteja nem um pouco preocupado em entrar nessa corrida por uma felicidade imaginada que ninguém sabe ao certo como é. Como bem ressaltou a psicanalista Maria Rita Kehl em entrevista: “do direito a felicidade, passou para a obrigação”, assunto também frequentemente tratado pelo psicólogo Arnaldo Cheixas Dias no blog que mantêm chamado “Em Terapia”.

A banda paraense Aeroplano explora essa questão no seu segundo disco, que chega depois de dois EP’s e o trabalho de 2011 intitulado “Voyage”. O novo rebento lançado nesse ano tem 10 faixas e, não por acaso, chama-se “Ditadura da Felicidade”. Foi produzido pelo guitarrista Diego Fadul, masterizado por Ivan Jangoux e conta com o (ótimo) projeto gráfico de Talitha Lobato. Se em “Voyage” a banda concebeu coisas realmente boas como “Dorme”, “Estou Bem Mesmo Sem Você” e “Vermelho que é Rosa”, por outro lado apresentou faixas confusas que não diziam muita coisa e influenciavam negativamente no resultado final.

Isso felizmente não acontece em “Ditadura da Felicidade”. Eric Alvarenga (vozes, violões e guitarras), Felipe Dantas (bateria, percussão e vocais), Bruno Almeida (baixo), Erik Lopes (guitarras) e Diego Fadul (guitarras, teclados e vocais) são responsáveis por um disco coeso que equilibra de bom modo as melodias e o trabalho instrumental, tendo como um belo destaque as letras pequenas mas certeiras (todas de Eric Alvarenga, com exceção de “11” de Diego Fadul). O trabalho das guitarras flui muito bem como podemos perceber na ótima “Bazar” e na estupenda faixa que abre o trabalho e traz os versos: “essa é a ditadura da felicidade, todo mundo sorrindo mesmo sem vontade”.

Além da faixa título outras merecem realce. “Drogaditos”, por exemplo, é uma sacada precisa e pop até a medula que fala sobre drogas legais usadas no dia a dia como Dorflex, Tandrilax e Dramin, que servem para lidar com a dor, para dormir melhor ou para forjar uma tranquilidade.  “Blasé” é outra pequena pérola. Destroça toda a pretensão cult de determinados indivíduos que acham que tem resposta para tudo concluindo que: “meu amigo cult vai ensinar ao mundo como ser alguém diferenciado”. “11” é mais uma que se sobressai com uma tristeza arrebatadora e a constatação de uma geração desnorteada que não sabe muito bem para onde quer ir.

“Ditadura da Felicidade” mostra uma banda que cresceu de modo assustador entre um trabalho e outro, e que passou de bons lampejos para uma produção mais homogênea. Em pouco mais de meia hora o álbum é uma sucessão de acertos tanto nas faixas mais enérgicas, quanto nas mais lentas, assim como na questão dos assuntos abordados nas letras. Com um pé no indie rock dos anos 2000 e outro em bandas como Violins, Radiohead e até mesmo Wilco, “Ditadura da Felicidade” é um dos melhores discos nacionais de 2014 até agora. É um disco para se ouvir feliz, triste, alegre ou deprimido. Você que escolhe. Nele não há ditadura alguma embutida.

Nota: 8,5

O disco está disponível para download gratuito no site da banda: http://www.aeroplano.mus.br


P.S: Essa tirinha do Malvados também trata dessa questão da ditadura da felicidade e suas reações:

sexta-feira, 18 de julho de 2014

“The Battered Bastards of Baseball” - 2014

O ator Bing Russell ficou conhecido no mundo do entretenimento pela sua atuação como o xerife Clem Foster no seriado “Bonanza” entre 1961 e 1972. Foram 57 episódios. Além disso, entre outras coisas, participou do clássico filme “Sete Homens e Um Destino” de 1960 do diretor John Sturges. Todavia, antes de ir para Hollywood tentar a sorte como ator, ele queria ser jogador de beisebol. Fascinado pelo esporte ainda tentou mas não conseguiu ir muito longe. Durante sua infância nos anos 30 porém, vivia junto com os maiorais do New York Yankees, sendo apadrinhado pelo arremessador Lefty Gomez, um ícone do clube e da história da modalidade.

Depois que “Bonanza” foi cancelado, Bing Russell ficou sem ter muito o que fazer, sem um objetivo na vida. Foi quando teve uma ideia louca de montar um time de beisebol em Portland (que tinha acabado de ver o time da cidade ir para outro lugar) para disputar a Minor League Baseball, algo que se trouxermos para a nossa realidade futebolística pode ser entendida como uma espécie de segunda divisão. A liga era dominada por franquias dos times grandes que disputavam a Major League (principal) e que a usavam mais como campo de estudos do que outra coisa, não se envolvendo com a cidade e excluindo a chance de milhares de pretensos jogadores.

Os times independentes então muito presentes na infância de Bing Russell haviam desaparecido e consigo levaram boa parte do amor real pelo esporte e sua correlação com o público, olhando pelo prisma do espetáculo. Foi nesse cenário que surgiu o Portland Mavericks que durante os anos de 1973 a 1977 fez história e redesenhou uma parte desse cenário. O ex-ator montou um time repleto de excluídos e renegados pelos grandes times, deu chance a desajustados que não atendiam visualmente ou de modo comportamental as rígidas regras da liga principal, e assim como se fosse em uma fábula ou um filme de superação conseguiu a façanha de fazer isso funcionar.

Essa história, pouco retratada anteriormente, agora está acessível no documentário “The Battered Bastards of Baseball” que entrou no último dia 12 de julho na grade do Netflix nacional (e só pode ser visto no país atualmente nessa plataforma). Produzido pelo próprio canal é dirigido pelos irmãos Chapman e McLain Way (netos de Bing Russell). Em 73 minutos apresentam-se depoimentos, fotos e imagens da época, assim como recortes de jornais e de revistas. A história quase surreal é vista por nomes como o ator Kurt Russell (de “Tango e Cash” e “À Prova de Morte”, entre tantos outros), que é filho de Bing e jogou algumas temporadas no “Mavs” como rebatedor.

Outro nome conhecido e bem participativo no documentário é o diretor Todd Field (de filmes como “Entre Quatro Paredes” e Pecados Intímos”) pois na época do time ele era um dos carregadores de equipamentos dos jogadores e guarda emocionantes lembranças até hoje. “The Battered Bastards of Baseball” é um documentário que cumpre com a função básica de contar uma história e retratar os fatos que ocorreram, e consegue ir até mais além fazendo com que o telespectador realmente se emocione na parte final. E o melhor é que não precisa conhecer o beisebol para apreciar o trabalho, basta apenas um pouco de coração.

P.S: O único senão é que o documentário poderia ter mais uns 20 minutos de duração, para explicar melhor algumas passagens. Nada demais, contudo.

Nota: 8,0


Assista a um trailer (em inglês):

quinta-feira, 17 de julho de 2014

"Doutor Octopus: Origem" - Zeb Wells e Kaare Andrews

Otto Octavius é um dos maiores vilões do Homem-Aranha. Pode-se até afirmar que é o maior, por mais que alguns direcionem esse título para o Duende Verde. Criado em 1963, no entanto sempre pareceu que podia ser mais, render mais. Mesmo como líder do Sexteto Sinistro (grupo que aterroriza o herói há tempos), se escondeu com mais frequência na obsessão em relação ao alter ego de Peter Parker, do que propriamente foi uma ameaça real. Quando isso aconteceu, foi onde todo esse potencial apareceu e rendeu as melhores histórias.

Recentemente a Panini Comics publicou no Brasil o encadernado “Doutor Octopus: Origem” com 124 páginas, capa dura com lombada quadrada e papel couchê. Lá fora a série foi lançada em 2004 em cinco edições com o título de “Spider-Man – Doctor Octopus: Year One” e só chega agora por aqui para aproveitar a fase publicada atualmente onde o personagem ocupa o papel do seu rival aracnídeo. Escrita por Zeb Wells (Homem-Aranha), ilustrada por Kaare Andrews (Fabulosos X-Men) e com cores de José Vilarrubia, é uma edição que tem seu próprio charme mesmo se equilibrando entre clichês clássicos e boas ideias.

Partindo do antigo pressuposto de que ninguém pratica o mal só pelo mal, Zeb Wells volta a infância do pequeno gênio onde insere uma mãe protetora (com uma relação no mínimo, complicada), um pai bêbado que bate no filho, dificuldade de sociabilidade e sofrimento generalizado na mão dos alunos da escola que frequenta. Essa quantidade de repetições e lugares comuns serve para montar a raiva que passa a brotar dentro do garoto. Funciona bem na questão da ligação com a mãe que é complexa e sugere outras abordagens, mas fracassa nas demais.

Depois disso avança para a transformação que ocorre ainda na juventude e não como um consagrado cientista (ainda que nessa juventude mostrada ele já merecesse respeito), ao contrário do que se viu quando Alfred Molina dignamente interpretou o personagem no filme “Homem-Aranha 2” de 2004 (parte da primeira, e melhor, trilogia do herói), o que até ajuda a manter a narrativa. O passo seguinte e final é o primeiro encontro com o Homem-Aranha, o estopim inicial de uma extensa convivência onde raiva e admiração transitam juntas.

A Panini Comics vem nos últimos meses dando mais espaço nas suas edições especiais para os vilões, como vimos nas edições do Loki, Caveira Vermelha e Magneto, com arcos salpicados da cronologia da Marvel. Isso é muito válido, pois são personagens com pouco material disponível nesses formatos por aqui. “Doutor Octopus: Origem” por isso e pela arte de Kaare Andrews é um álbum que exibe seu valor, apesar das obviedades do roteiro. Além disso, é sempre bom ver histórias de Octopus como foco principal, um gênio do universo Marvel que reside apenas um patamar abaixo de nomes como Tony Stark, Reed Richards e Bruce Banner no quesito inteligência.


Nota: 6,5

segunda-feira, 14 de julho de 2014

"Febre de Bola" - Nick Hornby


Em 1992 o inglês Nick Hornby publicava o primeiro livro que se chamava “Febre de Bola” (“Fever Pitch”, no original). O autor que ficou conhecido por livros como “Alta Fidelidade” e “Um Grande Garoto” se tornou sinônimo de uma (externamente) intitulada literatura pop, com uma escrita que abraça fortemente a cultura de modo geral. Porém, ali no início mostrava a paixão por outra coisa que não livros, discos e filmes, uma coisa chamada Arsenal, um dos grandes times de futebol de Londres.

Em 2012, por conta dos 20 anos dessa estreia houve o relançamento da obra em uma edição comemorativa lá fora, sendo que a Companhia das Letras lançou novamente por aqui no ano passado, com direito a nova introdução, 352 páginas e tradução de Christian Schwartz. Quando escreveu “Febre de Bola”, Nick Hornby tinha 34 anos e ainda procurava algum sentido na vida. Essa busca, assim como angústias e neuroses são retratados nos pequenos textos que compõem o livro, tendo sempre como pano de fundo algum jogo do Arsenal basicamente.

Usando o futebol como metáfora, ele agrada em cheio aos amantes do futebol, como também diverte aqueles que passam e/ou passaram pelo mesmo tipo de crise pessoal retratada em algumas passagens. O livro vai até 1991 e não cobre o período mais vitorioso da história do clube (de 1997 a 2006), onde craques como o francês Thierry Henry e o holandês Dennis Bergkamp levaram o time a alçar voos bem maiores. Apesar de alguns títulos na fase que começa em 1968 em um jogo contra o Stoke City, o período retratado no livro é primordialmente de decepções e de admiração pela chatice sem fim do Arsenal.

Chatice pelos imensos empates e placares mínimos dessa época ou pelas dores das derrotas em Wembley como para o Swindon Town da 3ª divisão da Liga Inglesa que representaria o primeiro título em 16 anos, ou até mesmo a alegria não completamente comemorada com a conquista da “dobradinha” em 1971 com os títulos da Liga Inglesa e da Copa da Inglaterra. “Febre de Bola”, no entanto, é acima de tudo um depoimento de amor ao futebol e em épocas como essa nossa agora, onde a Copa do Mundo no país acabou de fechar as portas, sua leitura é mais que agradável.

Além de expor essa paixão, o livro é do seu jeito também sobre crescimento. Sobre começar a ter contas a pagar, ter que escolher um futuro e coisas do tipo. Marca também a transição de um campeonato em crise para a liga atualmente mais cara e rentável do planeta. E não é por acaso que “Febre de Bola” é do mesmo período do debute da Premier League, muitos colocam na sua conta a retomada do amor do povo britânico ao esporte, como também por outro lado, um dos fatores que contribuíram para a elitização cada vez maior do esporte nas terras da Rainha.

O futebol inglês passava por um momento muito ruim, com resultados pífios em campo apesar da esperança em nomes como Paul Gascoigne e Gary Lineker, e temor nas arquibancadas e fora delas com os hooligans chamando mais atenção que o jogo em si. Desastres como o de Heysel na Bélgica, com 39 mortos e dezenas de feridos na final da Liga dos Campeões entre Liverpool e Juventus, e sobretudo por Hillsborough onde 96 pessoas tiveram suas vidas retiradas em uma semifinal da FA Cup em 1989 quando Liverpool e Nottingham Forest iam se enfrentar.

Foi nesse cenário de crise que o futebol inglês se reinventou a partir do chamado “Relatório Taylor”, um estudo que definia dezenas de mudanças e atualizações necessárias para o esporte e para a própria gerência dos clubes. Foi assim que a nova liga inglesa estreou em 15 de agosto de 1992 quando em um jogo entre o Sheffield e o Manchester United, Bobby Deane desviou de cabeça para vencer o estupendo goleiro Peter Schmeichel e assim fazer o primeiro gol dessa nova época (o jogo acabou 2 a 1 para o Sheffield). A partir dessa data os clubes eram os donos do espetáculo ao invés da FA (Football Association) e assim fugiam de seus desmandos e inércia.

Nick Hornby e “Febre de Bola” estiveram bem no centro de tudo isso de certa maneira. Pois no livro vemos problemas diversos como campos ruins, brigas, falta de segurança, cambistas, e desconforto aparecerem como personagens coadjuvantes do amor do autor pelo Arsenal, um amor que parecia que seria até impossível levar a vida longe do Highbury, estádio do time, que em 2006 deu lugar ao poderoso Emirates Stadium. E seu entusiasmo também se estende no livro pelo Cambridge City (time minúsculo da cidade onde foi estudar) e pela seleção da Inglaterra (que mais uma vez foi uma decepção só na Copa do Mundo do Brasil, não refletindo o sucesso da Premier League).

Entre desgostos, rezas, esperanças e frustrações, “Febre de Bola” é biblioteca mais que básica quando se fala de futebol e literatura andando juntos. Nick Hornby soube como poucos alinhar tudo isso em pequenos testemunhos divertidos e, à sua maneira, críticos e pessimistas. E depois dele, assim como o Arsenal a partir de 1991 seguiu para conquistas maiores, pois como ele mesmo escreve nas páginas do livro: “os times de futebol são como nós, sempre estão começando vida nova”.

Nota: 9,5

P.S: Nick Hornby meteu seu bedelho final sobre a Copa do Mundo do Brasil. Dá uma conferida aqui: http://www.espnfc.com/blog/world-cup-central/59/post/1943558/nick-hornby-has-the-world-cup-really-been-that-good

P.S: Depois da derrocada final da seleção brasileira na Copa que fez em casa, é necessário e extremamente urgente também repensar o nosso futebol e a nossa liga como os ingleses fizeram. É torcer para isso, mesmo sabendo que se depender dos clubes e da estimada CBF isso nunca acontecerá.

Textos relacionados no blog:

- Literatura: “Uma Longa Queda” – Nick Hornby
- Literatura: “Slam” – Nick Hornby
- Literatura: “Juliet, Nua e Crua” – Nick Hornby