terça-feira, 31 de março de 2015

"Mapas Para As Estrelas" - 2015

Uma jovem chega a Hollywood e a primeira coisa que faz é encomendar uma limusine para circular pela cidade atrás de casas de famosos e celebridades. Repassa um endereço específico ao motorista e vai conversando sobre esse tema o que leva o telespectador a crer nesse momento que se trata de mais uma deslumbrada com o mundo da fama. Só que essa impressão é descartada quando chegam ao endereço e lá não tem nada, só um grande espaço vazio. A partir disso começa uma história onde o buraco é muito mais embaixo.

A jovem se chama Agatha Weiss (Mia Wasikowska de “Alice no País das Maravilhas”) e mantém relação com uma família famosa composta por um arrogante ator adolescente (Evan Bird), a dedicada e conturbada mãe (Olivia Williams) e o pragmático pai (John Cusack) que tem horário na tevê e explora técnicas de autoajuda como fonte de rendimentos. Para fechar o ciclo temos uma atriz decadente (interpretada brilhantemente por Juliane Moore) para quem Agatha vai trabalhar, e o motorista da limousine com quem ela inicia um relacionamento (Robert Pattinson).

Esse é o mote de “Mapas Para as Estrelas” (Maps to The Stars, originalmente), o novo filme do diretor canadense David Cronenberg lançado lá fora no ano passado e com estreia recente aqui no Brasil. Na superfície o roteiro de Bruce Wagner (“Luta de Classes em Beverly Hills”) trata de um drama familiar e pessoal, mas é só passar um pouquinho da primeira camada para invadir um mundo sujo, frágil e com relações construídas por puro interesse, afinal é um filme de Cronenberg e se uma coisa que o seu cinema faz com maestria desde “Scanners” de 1981 é gerar incômodo.

“Mapas Para as Estrelas” sucede o ótimo “Cosmópolis” de 2012 (onde Robert Pattinson também estava em uma limusine), mas avança um pouco mais na experimentação e trabalha uma trama de desajuste social, pressão psicológica e esvaecimento profissional, junto com incesto, drogas, abusos sexuais e violência. Como sempre, Cronenberg faz ótimo trabalho com os atores que escolhe. Juliane Moore está excelente como a atriz saturada Havana Segrand, assim como John Cusack como o Dr. Stafford Weiss e Mia Wasikowska em um papel onde a dubiedade é a grande sacada.

“Mapas Para as Estrelas”, porém, traz um problema embutido no exagero de algumas situações. Mesmo que se perceba esse exagero como necessário para expor uma Hollywood doentia e superficial, ainda assim a carga é demasiada, principalmente quando são inseridas visões de pessoas mortas com frequência em mais de um personagem. No mais, ainda assim é um trabalho que instiga o telespectador a sair um pouco do habitual e só por isso já vale a pena ser visto, além do que, um filme mais ou menos de David Cronenberg vale mais do que a maioria do que temos hoje por aí.

P.S: O filme rendeu o prêmio de Melhor Atriz para Juliane Moore no Festival de Cannes e uma indicação de Melhor Diretor para David Cronenberg no mesmo festival.

Nota: 7,0

Textos relacionados no blog:

- Cinema: “Cosmópolis” - 2012

Assista a um trailer legendado:


sexta-feira, 27 de março de 2015

"Sniper Americano" - Chris Kyle

“Não arrisquei a vida para levar a democracia ao Iraque. Arrisquei-a pelos meus companheiros, para proteger os meus amigos e compatriotas. Fui à guerra pelo meu país, não pelo Iraque. Meu país me mandou lá para que aquela merda não fosse parar na nossa terra. Nunca lutei uma única vez pelos iraquianos. Eu estava pouco me fodendo para eles”.

Durante a guerra do Iraque nos anos 2000 que foi vestida com as roupas daquilo que os EUA denominaram de “Guerra ao Terror” depois do atentado de 11 de setembro de 2001, muito se ouviu sobre as verdadeiras causas da invasão, sobre os reais motivos que levaram o Presidente Bush e sua cúpula a ordenar os ataques. Durante esse tempo revelações foram feitas e percebeu-se que alavancada por inúmeras mentiras os motivos dos EUA não eram tão nobres como eles alegavam e pouco tinham a ver com levar a liberdade ao povo iraquiano acuado pelo sanguinário ditador Saddam Hussein.

O texto realçado lá em cima é retirado do livro “Sniper Americano” (“American Sniper: The Autobiography of the Most Lethal Sniper in U.S Military History” no original, 2013), que a editora Intrínseca publicou no Brasil no início desse ano pegando carona no filme dirigido por Clint Eastwood e estrelado por Bradley Cooper, que rendeu surpreendentes e inexplicáveis 6 indicações ao Oscar, incluindo ali categorias como Melhor Filme, Melhor Ator e Melhor Roteiro Adaptado. Se ao sair do cinema questionava-se como um trabalho tão ruim poderia ter sido agraciado com tantas indicações, depois de acabar o livro que deu origem ao longa se conclui que nada é tão ruim que não possa piorar mais.

O livro de Chris Kyle elaborado com a ajuda do escritor Jim DeFelice e do advogado (sim, advogado) Scott McEwen ganhou o subtítulo nacional “O Atirador Mais Letal da História dos EUA”, realçando o fato de que mais de 150 mortes foram atribuídas ao autor e outras mais ainda anseiam por confirmação. Com 344 páginas e tradução de André Gordirro, o livro apresenta esse SEAL (membro de força específica da Marinha treinada para operações especiais), nascido no Texas e falecido aos 39 anos, assassinado por outro veterano de guerra que sofria de estresse pós-traumático e estava dentro do rol de pessoas ajudadas em um projeto destinado a reinclusão de soldados na sociedade.

Desde criança Chris Kyle já tinha acesso a armas de fogo, coisa normal dentro da cultura do seu país. Quando resolveu entrar para a Marinha com o senso de patriotismo exacerbado se direcionou para o grupo de atiradores de elite, onde essa paixão armamentista poderia ser bem utilizada. Lá ele encontrou um ambiente propício para progredir e utilizar suas ideias de mundo a favor de Deus, da pátria e da família, nessa ordem, como faz questão de destacar em várias passagens. E foi premiado por isso e exaltado pelos seus feitos, suas mortes, mesmo que isso não lhe interessasse tanto no que chamava de “glória de mentira”, pois o objetivo era mesmo matar pessoas.

Quando descreve o treinamento para chegar a SEAL, onde sofria todo tipo de violência física e psicológica para ficar quase indestrutível, é fácil perceber como a máquina de guerra funciona superficialmente. Os soldados passam por uma lobotomia onde todo o senso de questionamento é retirado para seguir ordens. A enfermeira britânica Florence Nightingale, pioneira do tratamento a feridos de guerra, afirmou certa vez que: “é necessária uma certa dose de estupidez para se fazer um bom soldado”. Durante a leitura de “Sniper Americano” essa frase se correlaciona em vários momentos e em diversas formas.

A figura de Chris Kyle, pelo menos aquela retratada no livro, é egocêntrica e raivosa, com claros exemplos de racismo e xenofobia, além de desprezo para quem não pensa da mesma maneira que ele. Visões de valores deturpados pelo meio ou o senso de que todas as mortes são abonadas por algo superior e ele pode “ficar diante de Deus com a consciência limpa por ter feito o (...) trabalho”, mostram que o seu fundamentalismo religioso não é tão diferente assim daquele que visava combater. Por dentro desse discurso de pátria e religião o que reside mesmo é a diversão, que o autor afirma frequentemente conseguir, dizendo que “adorava o que fazia”.

Não há ingenuidade na guerra e nela não existem santos. Barbaridades são cometidas dos dois lados envolvidos, por isso toda crucificação pode ser uma bela furada. No entanto, “Sniper Americano”, além da escrita sem brilho, mostra um protagonista com ideário questionável e senso de justiça completamente difuso. É um livro que vale somente para atestar o absurdo doutrinamento utilizado para se formar soldados eficazes e com pouca argumentação destinados a atingir fins governamentais escusos travestidos de bondade, sendo que o enaltecimento dos feitos de guerra pelo governo e pelo próprio livro construindo uma lenda ou mito faz parte direta disso.

P.S: Mestre Yoda, que sabia muito das coisas, afirmava brilhantemente em Star Wars:“Grande guerreiro? Guerra não faz grande ninguém”É por aí.

Nota: 3,0

A editora Intrínseca fez uma página para o livro. Para saber mais, acesse: http://www.intrinseca.com.br/sniperamericano 

domingo, 22 de março de 2015

Quadrinhos: "Cidade Selvagem - Vol. 1" e "Batman: Noel"

“Cidade Selvagem – Volume 1” (Fell, no original) é ambientada em uma zona urbana detestável que usa como acesso uma simbólica ponte. Nesta terra sem regras, a criminalidade e a falta de punição por parte da lei alcançam níveis estratosféricos. É nessa pequena parte do inferno que o Detetive Fell está inserido quando opta (por motivos silenciosos) em trabalhar na  delegacia da região que possui apenas “três detetives e meio” disponíveis. Publicada originalmente pela Image Comics em 9 edições entre setembro de 2005 e janeiro de 2008, a série ganha nova publicação nacional pela Mythos Books agora no início de 2015, com 164 páginas dispostas em uma bonita edição encadernada (como é costume da editora). Escrita por Warren Ellis (“Transmetropolitan”) e com arte de Ben Templesmith (“30 Dias de Noite”) temos uma história bem ao estilo do seu criador, com personagens que sempre deixam alguma coisa para ser descoberta e vivem na margem entre o certo e o errado sem se importar muito com isso. Contando com arcos fechados dentro de cada edição como nos seriados criminais famosos da televisão, acaba por funcionar bem, devido também a carga de humor negro embutida. Todavia, o grande destaque é a arte de Templesmith que surge riscada, escura, desfocada e com alguma referência a Frank Miller inserida ali no meio. Mesmo com um sentimento geral de não finalização já que a edição número 10 ainda não foi lançada lá fora (de 16 previstas), “Cidade Selvagem – Volume 1” se configura em uma boa história de quadrinhos.

Nota: 7,0

“Um Conto de Natal” de Charles Dickens já ganhou incontáveis adaptações desde 1843, seja na televisão, teatro, cinema ou literatura. A história do endurecido Scrooge que recebe a visita de três fantasmas no natal (representando o passado, presente e futuro) para que, entre outras coisas, analise o caminho que a vida dele tomou, praticamente já foi exaurida por completo. Eis que em 2011 o artista Lee Bermejo (da fenomenal “Coringa” ao lado de Brian Azzarello) resolveu utilizar novamente essa narrativa e desta vez correlacionar com o Batman. Sim, o Batman. O resultado disso tinha tudo para ser um imenso lago de sentimentalismos e clichês, mas, para grata surpresa, as coisas não saíram tão banais assim. “Batman: Noel” que a Panini Comics lançou por aqui no final do ano passado com 112 páginas, papel couchê e capa dura, com roteiro e arte de Lee Bermejo e cores de Barbara Ciardo é uma história que merece estar no rol das melhores coisas feitas com o morcego nos últimos anos. Transformando Batman em Scrooge, o autor mostra um herói raivoso que há muito tempo deixou de lado a nobreza e entrou em uma caçada cega contra o mal, desvirtuando assim seus princípios e ações. Quando começa a perseguir um dos capangas do Coringa no Natal ele recebe a visita dos três “fantasmas”, aqui travestidos de Robin, Mulher-Gato e Superman e a jornada de redenção é construída. “Batman: Noel” apresenta uma arte rica e exuberante, além de um roteiro que usa a obviedade como força para edificar uma história com significados e emoções.

Nota: 9,0

Textos relacionados no blog:
- Literatura: “Máquina de Armas” – Warren Ellis
- Quadrinhos: “Coringa” – Brian Azzarello e Lee Bermejo


quarta-feira, 18 de março de 2015

Música: Belle and Sebastian e Idlewild

Prestes a completar 20 anos de existência o Belle and Sebastian lança o nono disco da carreira. “Girls in Peacetime Want to Dance” saiu em janeiro pela Matador Recors e conta com 12 faixas produzidas por Ben H. Allen III (Animal Collective, Gnarls Barkley) e masterizadas pelo velho conhecido Frank Arkwright. Com lançamento em vários formatos traz além das canções originais alguns bônus, como na versão japonesa que conta com 4 acréscimos (entre elas a boa “A Politician’s Silence”). O sucessor de “Write About Love” de 2010 mostra os escoceses encabeçados por Stuart Murdoch levando sua música em direção mais dançante que o habitual, com muitos teclados, sintetizadores e ecos do pop eletrônico dos anos 80, do Pet Shop Boys e da disco music. Nesse sentido temos acertos na abertura com “Nobody’s Empire”, em “Perfect Couples” e em “Play For Today”, ótimo dueto com Dee Dee Penny da Dum Dum Girls. O Belle Sebastian de antes dá as caras aqui e acolá como em “Allie” e na esperançosa “Ever Had A Little Faith”, uma das melhores faixas do trabalho. Com “Girls in Peacetime Want to Dance” o Belle and Sebastian demonstra não estar acomodado com as fórmulas de sempre, muda um pouco, insere músicas mais longas e avança artisticamente nesse ponto, por mais que o disco não seja um primor completo como atestam as faixas “The Party Line”, “The Cat With The Cream” e “Enter Sylvia Plat”.

Melhor faixa: "Ever Had A Little Faith"

Nota: 6,0

Facebook: http://www.facebook.com/belleandsebastian 

O grupo escocês Idlewild não lançava nada desde 2009 com “Post Electric Blues”. Nesse intervalo os líderes se aventuraram em carreira solo e conseguiram bons frutos tanto com Roddy Woomble que lançou dois estupendos trabalhos (“The Impossible Song & Other Songs” de 2011 e “Listen To Keep” de 2013) quanto com Rod Jones (“A Sentimental Education” de 2010). A ausência chegou ao fim no início desse ano com “Everything Ever Written”, álbum de 12 faixas gravado em vários estúdios e lançado pela gravadora Empy Words com produção do guitarrista Rod Jones e masterização de Steve Fallone. Os cabeças do Idlewild junto ao baixista Andrew Mitchell e o baterista Colin Nweton, além do novato tecladista Luciano Rossi, trazem o trabalho individual, predominantemente acústico, para esse sétimo registro. Esse lado sempre esteve escondido no meio da urgência de discos como “The Remote Part” de 2002 ou “Make Another World” de 2007, mas agora aparece com mais afinco e auxílio de piano, cello, trompete, saxofone, órgão e o altivo violino de Hanna Fischer que também ajuda nos vocais. Não que as guitarras tenha sumido, marcam presença em “Collect Yourself”, “Come On Ghost” e principalmente em “On Another Planet”, além dos impecáveis 7 minutos de “(Use It) If You Can Use It”, porém, isso se equilibra bem com o lado mais calmo visto nas faixas “Every Little Means Trust”, “So Many Things To Decide”, “Like A Clown” e “Utopia”. Em “Everything Ever Written”, o Idlewild continua sendo uma banda que você sempre pode acreditar, não só pelas canções, mas também pelas letras e postura. O novo disco é mais um forte exemplo disso.

Melhor faixa: "(Use It) If You Can Use It"

Nota: 9,0

Site oficial: http://idlewild.co.uk

Textos relacionados no blog:
- Música: “Write About Love” (2010) – Belle and Sebastian
- Música: “A Sentimental Education” (2010) – Rod Jones
- Música: “The Impossible Song & Other Songs” (2011) – Roddy Woomble
- Música: “Listen to Keep” (2013) – Roddy Woomble

Assista ao clipe de "The Party Line" do Belle and Sebastian e uma versão acústica ao vivo do Idlewild para “Every Little Means Trust”:



domingo, 15 de março de 2015

Quadrinhos: "Batman: Arquivo de Casos Inexplicáveis" e "Kirby: Genesis"

  
O que a contínua exposição a produtos químicos pode causar a mente e ao corpo? Foi essa a pergunta que o escocês Grant Morrison articulou antes de começar a escrever o compêndio de histórias que resultaria em “Batman: Descanse em Paz” (Batman: R.I.P, no original, 2008), onde o morcego depois de uma desgastante luta psicológica e física acaba por sucumbir. Na detalhada e extensa pesquisa que fez para chegar ao último trabalho à frente do personagem que cuidou por um bom tempo, o escritor se aprofundou no período renegado dos anos 50 e 60. “Batman: Arquivo de Casos Inexplicáveis” reúne 12 dessas histórias em edição encadernada com 148 páginas lançada pela Panini Comics em 2013. As tramas datam de 1951 a 1964 e contam com nomes clássicos da época como Bill Finger, Dick Sprang e Charles Paris. Essa fase parcialmente exposta no álbum apresenta o morcego participando das histórias mais absurdas possíveis enfrentando alienígenas, substâncias perversas, terror psicológico e criaturas delirantes, além de adendos ridículos (mas que fizeram sucesso lá atrás) como o Bat-Cão (!) e o Bat-Mirim (!!). Mesmo que ao ler isso atualmente não dê para se apontar muitos méritos, é no mínimo interessante ver onde Grant Morrison foi buscar argumentos para a criação, resumindo tudo como se fosse uma espécie de “Arquivo X” próprio do Bruce Wayne.

Nota: 6,0

“Marvels” chegou às bancas em 1994, com roteiro de Kurt Busiek e arte de Alex Ross. Com alto nível de qualidade e perspectiva diferente do que se via habitualmente, a série foi um sucesso, alavancou a carreira de ambos e até hoje ganha republicações. A talentosa dupla se reuniu novamente para criar uma obra baseada em conceitos e personagens de Jack “King” Kirby, um dos maiores nomes dos quadrinhos de todos os tempos. “Kirby: Genesis” acumula esse trabalho compreendido originalmente entre as edições 0 a 8 que terminaram em 2011 nos EUA com a publicação da Dynamite. Além de Busiek e Ross, dois brasileiros fazem parte e dão importante contribuição ao trabalho: Jack Herbert na arte e Vinicius Andrade nas cores. No suntuoso encadernado lançado pela Mythos Editora aqui, com direito a diversos extras como esboços, textos, layouts e capas alternativas somos apresentados a uma clássica aventura de ficção científica, onde a Terra de repente recebe a visita de duas enigmáticas figuras pairando nos céus. Sabe-se depois que a culpa dessa visita é de uma sonda enviada ao espaço levando uma mensagem ostentando exatamente a imagem dos estranhos recém surgidos. Somado a isso outras aparições acontecem ao redor do globo e um intricado cenário se monta com interesses múltiplos, inclusive a salvação do planeta.  “Kirby: Genesis” é uma esplêndida homenagem a um mestre, e tanto utiliza personagens já conhecidos (Capitão Vitória, Estrela Prateada) como cria algo novo a partir de ideias primárias e, mais importante que isso, consegue exibir brilho próprio.

Nota: 9,0

Textos relacionados no blog:

- Quadrinhos: “Os Invisíveis” – Grant Morrison e vários artistas
- Quadrinhos: “Eternos” – Neil Gaiman e John Romita Jr.


sexta-feira, 13 de março de 2015

Literatura: Coleção "A Torre Negra"

"Já escrevi romances e contos suficientes para encher um sistema solar da imaginação, mas a história de Roland é meu Júpiter, um planeta que faz de anão todos os outros...” (Stephen King sobre “A Torre Negra”)

Stephen King ainda era um jovem universitário nos anos 70 quando começou a rabiscar a ideia inicial de uma saga inspirada no universo criado por J.R.R Tolkien em “O Senhor dos Anéis”, muito antes do diretor Peter Jackson levar a história para o cinema e auferir uma atenção muito maior em torno dela. O hoje premiadíssimo escritor estadunidense usou também como base primária um poema épico do século XIX, de Robert Browning, chamado "Childe Roland to The Dark Tower Came" para compor a série que hoje já foi traduzida para mais de 40 países e vendeu milhões de livros.

A primeira parte dessa epopeia se chama “O Pistoleiro” e inicialmente foi publicada em capítulos dentro de revistas no final dos anos 70, conhecendo sua versão como romance completo apenas em 1982. Em 2004, Stephen King publicou o último dos sete livros originais (chamado “A Torre Negra”), porém é bom salientar que posteriormente em 2012 lançou mais outro (“O Vento na Fechadura”) inserindo ele no meio da trama original, um livro que não chega a agregar quase nada, sendo apenas um pouco de mais do mesmo, nesse caso em específico.

Foram escritas mais de 4.000 páginas para cobrir toda a história de Roland de Gilead, um pistoleiro (o último) condenado a vagar por um mundo devastado em busca de salvação e de achar a torre negra que dá título ao trabalho. Além da claríssima influência já citada dos livros de Tolkien, “A Torre Negra” tem toques do faroeste de Sérgio Leone, da ficção científica de Stanley Kubrick e da literatura de Mario Puzo e Robert Jordan, além de inúmeros enxertos de cultura pop como, por exemplo, o livro “Ardil 22” de Joseph Heller e canções como “Velcro Fly” do ZZ Top e “Paint It Black” do Rolling Stones.

O começo dessa aventura de obstinação, desespero, morte, esperança, terror, suspense, medo e aprendizado começa na perseguição do protagonista a uma enigmática figura em que o tempo se contorce, se quebra e se mistura sem lógica aparente, até formar seu ka-tet (um grupo), concebido através do futuro visto no tarô. Esse grupo tem coadjuvantes fundamentais como Eddie Dean, um viciado em heroína que vive nos anos 80, Odetta, uma paraplégica ativista dos direitos civis e raciais dos anos 60, e o garoto Jake, que precisa ser resgatado de outro mundo depois de morrer por lá.

O início não é fácil e demora a deslanchar, o que só acontece no final do segundo livro e segue sempre respondendo a algumas perguntas e levantando outras, como a razão pela qual o mundo de Roland “seguiu adiante”. Um dos pontos altos é a ambientação dos lugares, que deixa para o leitor um compêndio narrativo capaz de possibilitar a visualização destes locais, principalmente cidades como River Crossing, Lud e Calla Bryn Sturgis. Em determinado momento é inserida outra história do personagem principal, referente ao passado, e isso constrói um adendo interessante pois a trama principal é colocada basicamente de lado, e sobrevive.

Depois de percorrer os sete volumes, conclui-se que “A Torre Negra” não é o tipo de obra que chega ao ápice no final, esse ápice aparece durante a trama, nos livros intermediários. A parte realmente interessante que desafia o leitor está entre os livros 2 (“A Escolha dos Três”) e 6 (“A Canção de Susannah”). O final da saga além de um pouco confuso, exibe leve exercício de ego do escritor (que já havia se inserido dentro da própria trama), para depois amarrar a maioria das pontas soltas no decorrer do caminho e convencer o leitor que o acompanhou por todo o caminho.

“O mais longo romance popular de todos os tempos”, como o autor o intitulou, apresenta muitas qualidades (apesar dos excessos) e tenta se transpor para o cinema e a tevê - sem sucesso infelizmente por enquanto - mesmo sendo encabeçado pelo conceituado diretor e produtor Ron Howard e tendo nomes de peso cogitados para os papéis como Javier Bardem, Russell Crowe e Aaron Paul. Nos quadrinhos já foi feita essa transposição de modo eficiente, sucinto e eficaz, dentro daquilo que poderia se esperar para a trilogia cinematográfica desejada, a fim de que o ambíguo, obcecado e carismático Roland de Gilead alcance um número maior de pessoas com a sua incansável perseguição.

P.S: A Editora Objetiva publicou os sete livros da coleção original aqui no Brasil entre 2005 e 2007, assim como o posterior “Vento na Fechadura” em 2013.

Nota (coleção dos sete livros originais):  8,5

quarta-feira, 11 de março de 2015

Quadrinhos: “O Sombra - O Fogo da Criação” e “Violent Cases”

O Sombra é um personagem de quadrinhos criado por Maxwell Grant (um pseudônimo do escritor Walter Brown Gibson) que obteve sucesso nos anos 30 e início dos 40, chegando a invadir mídias como o rádio. Mesmo esquecido após esse período sempre aparecia alguém disposto a revisitar a obra, quer seja nos anos 50 ou nos anos 80, mas logo depois o personagem voltava para um leve ostracismo. Em 2012 foi a vez da editora Dynamite fazer essa visita em projeto que ambiciona olhar para trabalhos antigos. Os escolhidos para comandar essa caminhada foram Garth Ennis (“Preacher”, “The Boys”) e Aaron Campbell (“Besouro Verde”) que forjaram as primeiras seis edições. “O Sombra – O Fogo da Criação” foi lançado pela Mythos Books aqui no Brasil no final de 2013, mas teve o acesso prejudicado devido a distribuição periclitante. Com 208 páginas, a edição encadernada é elegante e repleta de extras como o roteiro original e artes de capa feita por nomes como Alex Ross, John Cassaday e Howard Chaykin. Na trama, voltamos a 1938, no cenário anterior a Segunda Guerra Mundial onde Lamont Craston, o abastado cidadão que encarna o Sombra para combater o mal que espreita no coração dos homens, aceita uma missão contra os japoneses atrás de material secreto para ser utilizado na construção da arma invencível. Com arte soturna e repleta de tons escuros, Garth Ennis cria uma aventura de espionagem bem ao seu estilo, com violência e inteligência andando juntas, adicionadas a eventos históricos e um ar de homenagem a época que retrata, dando assim a chance para mais leitores conhecerem esse antigo e conflituoso justiceiro.

Nota: 6,5

Falar hoje das qualidades do trabalho de Neil Gaiman e Dave McKean é uma tarefa relativamente tranquila, tendo em vista o que os dois produziram nos últimos 25 anos dentro e fora do mundo dos quadrinhos. No entanto, em 1987 os dois eram jovens e praticamente desconhecidos quando a pequena editora inglesa Escape decidiu apostar em um projeto deles. “Violent Cases” foi publicada originalmente em 1987 e no final do ano passado ganhou uma nova reedição nacional através da Editora Aleph com 64 páginas, formato grande (21,5 x 29 cm) e muitos extras contendo textos de Neil Gaiman e Alan Moore, por exemplo. A graphic novel tem amplo aspecto biográfico e trata de lembranças de infância, especificamente um atendimento médico efetuado junto a um osteopata que havia durante muito tempo trabalhado para o mafioso Al Capone em Chicago. O roteiro equilibra essas lembranças entre o real e a fantasia e aproveita para sobrepor questões familiares e psicológicas no desenvolvimento, ainda que de modo sucinto. A arte e as cores de Dave Mckean são remasterizadas para esta edição e amplificam assim a habilidade, mostrando diversas experimentações de estilo e estética, além de atender a função primordial da história. Essa nova publicação de “Violent Cases” tem bastante valor e se torna obrigatória para os fãs de Neil Gaiman, tanto pelo conceito e época, quanto pelo caprichado trabalho editorial.

Nota: 8,5

Textos relacionados no blog:
- Quadrinhos: “Os Livros da Magia” – Neil Gaiman
- Literatura: “O Oceano no Fim do Caminho – Neil Gaiman


sábado, 7 de março de 2015

Documentários: “Fontanarrosa – Vida, Pasíon Y Humor” e "Dear Mr. Watterson"

Roberto Fontanarrosa foi um cartunista e quadrinista argentino que também se aventurou com sucesso em contos e romances. Chamado carinhosamente de “Negro” pelos amigos e familiares foi um cara apaixonado pelo que fazia e pelo time do Rosário Central, oriundo da cidade natal que nunca abandonou mesmo que a carreira lhe suplicasse em ir para Buenos Aires. Falecido em 2007 criou personagens famosos no seu país como “Boogie, El Aceitoso”, que era uma forte sátira contra os EUA e contra os preconceitos em geral, convidando a rir a partir do excesso e “Dom Inodoro Pereyra”, um típico gaúcho dos pampas argentinos. Na época da ditatura foi um dos que combateram com papel e lápis em revistas clássicas como “Hortênsia” e “Satirícon”, participando depois também da conceituada “Fierro”. “Fontanarrosa – Vida, Pasíon Y Humor” (2008) é um documentário dirigido pelo experiente Matías Gueilburt que conta um pouco da trajetória aliado a depoimentos de pessoas ligadas a ele. É uma narrativa simples, com algum acréscimo de outras linguagens visuais que cumpre com o objetivo primário, sem se aprofundar muito ou buscar coisas negativas, caso elas existissem. Influenciado pelos quadrinhos argentinos dos anos 50 e pelo italiano Hugo Pratt (de “Corto Maltese”), Fontanarrosa foi um caso raro de sucesso de público e crítica, e que até hoje é adorado por seu país e por nomes importantes da atualidade como o impecável Liniers e o premiado diretor José Juan Campanella que adaptou um texto dele para compor o filme de animação “Metegol” (aqui chamado de “Um Time Show de Bola”), sem esquecer nunca também da intensa torcida do Rosário Central.

O documentário está disponível no Netflix.

Nota: 6,5

Mesmo que você não goste de tirinhas de quadrinhos e ache isso algo sem valor algum, a chance de já ter se deparado com alguma coisa de “Calvin and Hobbes” (Calvin e Haroldo, no Brasil) por aí é estratosférica. E olha, que ao contrário de outros ícones como os “Peanuts” de Charles M. Schulz ou o “Garfield” de Jim Davis, o seu criador Bill Watterson nunca liberou os produtos para licenciamento em outras mídias. O documentário “Dear Mr. Watterson” (2013) dirigido por Joel Allan Schroeder, um fanático pelos personagens, se concentra no legado da obra e suas correspondências dentro do mercado, deixando um pouco de lado a vida pessoal do criador, um recluso de carteirinha que deixou de fazer novas aventuras dos personagens em 31 de dezembro de 1995 e desde então quase não apareceu ou deu entrevistas, ressurgindo somente no final do ano passado com uma nova tirinha aleatória para um festival de quadrinhos. Com um início arrastado e preocupante, quando o diretor começa a contar as próprias experiências tornando o filme quase um diário pessoal, o trabalho ganha muito em fôlego quando aparecem outros cartunistas nos depoimentos. Isso eleva o filme para uma análise consistente da obra, das influências, do mercado, do domínio sobre a criação e da comercialização demasiada que tira a fantasia do trabalho e deixa tudo claro demais. Os 40 minutos que tratam desses pontos fazem de “Dear Mr. Watterson” um documentário interessante, não somente para os milhões de fãs da criança travessa e criativa e do melhor amigo, um tigre de pelúcia racional que serve de contraponto para as travessuras, como também para quem gosta do universo dos quadrinhos em geral.


O documentário está disponível no Netflix.

Nota: 8,0

Assista ao trailer de “Dear Mr. Watterson” (em inglês): 

quarta-feira, 4 de março de 2015

Quadrinhos: "Astronauta: Singularidade" e "Casanova: Gula"

O projeto Graphic MSP onde os personagens de Mauricio de Sousa são revisitados por novos autores em histórias mais longas e adultas já rendeu ótimos momentos. “Astronauta - Magnetar” lançado em 2012 foi o primeiro filho desse projeto e merecidamente ganhou uma continuação no ano passado pelo mesmo Danilo Beyruth que fez a arte e o roteiro e contou novamente com o talento de Cris Peter na colorização. “Astronauta – Singularidade” tem 84 páginas, dois tratamentos distintos de publicação (em brochura e capa dura) e lançamento pela Panini Comics. Nessa nova jornada o personagem está passando por uma avaliação psicológica para saber a extensão dos danos causados na aventura anterior (e não está aceitando isso muito bem) quando aparece outra missão na qual terá que dividir a nave com dois passageiros, com objetivos um pouco diferentes do seu. Danilo Beyruth vem construindo um personagem complexo até agora, expondo medos, dúvidas e solidão ao lado da perseverança, empenho e idealismo que lhe é inerente. O argumento de “Astronauta – Singularidade” é meio óbvio e está abaixo do álbum que o precedeu, mas ainda assim vale para aumentar a complexidade dessa versão do Astronauta, que aliada ao trabalho visual magnífico tanto na arte quanto na colocação das cores se configura em credencial suficiente para mais um volume no futuro.

Nota: 7,0

Texto relacionado no blog:
- Quadrinhos: “Astronauta Magnetar” – Danilo Beyruth 

“Casanova: Gula” foi publicada aqui no Brasil no início de 2014 pela Panini Books com 164 páginas e capa dura e traz os desdobramentos do que foi visto em “Casanova: Luxúria”, juntando as edições originais de 8 a 14. Matt Fraction continua no comando do roteiro e as cores são novamente de responsabilidade da talentosa Cris Peter, mas a arte desse arco de histórias passa do Gabriel Bá para seu irmão gêmeo Fábio Moon, que opta em manter o mesmo estilo basicamente, o que significa um alto nível de qualidade. Dessa vez a mistura de espião com um bocado de outras coisas chamado Casanova Quinn está perdido, mas não em um lugar e sim em um tempo, o que resulta na pergunta “Quando ele estará?”. Essa é a deixa para Matt Fraction deslanchar a narrativa amalucada e anárquica com ciência, sexo, ação, humor corrosivo e muitas referências. Na leitura vemos uma referência ao Strokes aqui, outra a Francis Ford Coppola acolá, passando por Thomas Pynchon, Apples In Stereo e Beatles. O Casanova em si praticamente quase não aparece, seu pai e irmã comandam essa edição ao lado dos vilões e de novos personagens tão estranhos e surreais como os já conhecidos. “Casanova: Gula” mantém o padrão da série e é uma leitura divertidíssima, onde a estética continua sendo superior aos argumentos, mas, na boa, quem se importa?

Nota: 7,5

Texto relacionado no blog:
- Quadrinhos: “Casanova: Luxúria” – Matt Fraction e Fábio Moon



segunda-feira, 2 de março de 2015

Música: A Place To Bury Strangers e Father John Misty

O trio de Nova York chamado A Place To Bury Strangers lançou o primeiro disco homônimo em 2007, onde se destacavam músicas como “My Weakness”. Depois, vieram o ótimo “Exploding Head” de 2009 e o mais “comportado” (por assim dizer) “Worship” de 2012. O trio encabeçado por Oliver Ackermann (guitarras e vocais) e agora nessa formação com Dion Lunadon (baixo) e Robi Gonzalez (bateria) apresenta em 2015 o quarto trabalho intitulado “Transfixiation”, gravado na sua maioria em um estúdio do Brooklyn com produção do próprio guitarrista e com 11 faixas disponíveis em quase 40 minutos. O trabalho é colocado no mercado pela gravadora Dead Oceans (casa de bons nomes como Destroyer, The Tallest Man On Earth e Dirty Projectors) e mostra a mistura de shoegaze, pós-punk, noise e psicodelia da banda mais poderosa que outrora, tentando se equilibrar no flerte entre algo mais ameno (se é que isso é possível) e o experimentalismo sem complacência alguma. O resultado disso é um trabalho que se iguala ao disco de 2009 em qualidade e exibe bons momentos de sobra como na dobradinha “Supermaster” e “Straight” que abre o álbum com o baixo em primeiro plano suportando as distorções que vão explodindo pelo caminho ou no caos sonoro provocado por “Deeper”. Destaque ainda para a doçura deformada de “We've Come So Far”, a urgência de “I’m So Clean” e a barulheira de “I Wiil Die”. Preparem os ouvidos.

Melhor faixa: “Straight”

Nota: 7,0

Facebook: http://www.facebook.com/aplacetoburystrangers 

Depois de “Fear Fun” de 2012, Josh Tillman voltou esse ano a lançar um disco usando a alcunha de Father John Misty. “I Love You, Honeybear” sai pela Sub Pop assim como o anterior e apresenta 11 faixas em 44 minutos e uns trocados. Se no álbum anterior se percebia alguma semelhança com a ex-banda (Fleet Foxes), isso ocorre em uma escala bem menor agora. O registro é de acordo com o músico um álbum conceitual (mas passa um pouco longe disso) e tem como foco a vida pessoal, o casamento e os EUA. Todas as canções são compostas por ele, que também assina a produção em conjunto com o músico Jonathan Wilson e toca alguns instrumentos no meio de um corpo mais luxuoso dessa vez com direito a outros músicos e violinos, cellos, trompetes e clarinetes inseridos pelo meio. Do início formidável com pianos, orquestração e backing vocals da faixa-título até o final com a singela “I Went To The Store One Day” temos um disco agradável, com boas melodias e letras que externam um humor meio cínico aliado a desilusões cotidianas. As letras exibem boas sacadas em “True Affection” que alfineta a comunicação pessoal dos nossos dias brincando com a eletrônica, na paixão desfigurada de “Strange Encounter”, na acidez de “Holy Shit” e principalmente na icônica “Bored In The USA”. “I Love You, Honeybear” está vários passos além do antecessor e mostra que Father John Misty pode muito mais do que já visto em coisas como “Hollywood Forever Cemetery Sings”, como atesta a bela “When You're Smiling And Astride Me”. Um disco que merece ser ouvido.

Melhor faixa: “When You're Smiling And Astride Me”

Nota: 8,5


Texto relacionados no blog:
- Música: “Fear Fun” (2012) – Father John Misty

Assista ao clipe de “Straight” do A Place To Bury Strangers:


A Sub Pop colocou no seu canal no Youtube “I Love You, Honeybear” na íntegra. Ouça: