quarta-feira, 27 de novembro de 2019

Quadrinhos: "Lenora", "Justin", "Desafiador - Retorno à Eternidade" e "David Boring"

 

Edgar Allan Poe faleceu em 1849 na cidade de Baltimore nos EUA aos 40 anos e não viu sua obra fazer sucesso e ganhar a imensa amplitude que exibe até hoje. A hq “Lenora” da ilustradora e quadrinista Juliana Fiorese (de “Clara Carcosa”) é mais uma prova disso. Concebida de maneira independente e viabilizada através de uma campanha de financiamento coletivo é uma adaptação do poema “Lenore” de 1843, trabalho menos conhecido do autor de “O Corvo”. Com 48 páginas e uma edição muito cuidadosa e bonita temos a história de Guy de Vere que perde sua paixão cedo demais e procura aceitar isso de alguma maneira, sendo esse processo de aceitação que o poema exibe e aparece na tradução de Pedro Mohallem que colabora com um texto bem interessante no final. “Lenora” é outra iniciativa caprichada em cima da obra do bardo americano com uma arte detalhista e admirável.

Nota: 6,0



Em 26 de maio de 1983 nascia Justine Claude Adélaïde, mas logo aos 4 anos percebeu que na verdade não era menina e sim, um menino. Esse é mote de “Justin”, trabalho da quadrinista Anne-Charlotte Gauthier (de “O Enterro das Minhas Ex”) publicado na França em 2016 e que recebeu edição nacional pela editora Nemo no ano passado com 104 páginas. Em uma sociedade ridícula e preocupantemente conservadora, a autora narra os desafios que a protagonista percorre para conseguir se sentir bem e a vontade. A transexualidade abordada na trama é espelhada em ações da família, da escola, do círculo social e dos psiquiatras que não tem habilidade ou conhecimento. “Justin” apresenta as dificuldades de ser entendido como se quer, mas sem se aprofundar muito, deixando a trama até suave de certo modo, enquanto brinda o leitor com as conquistas de alguém que não se deixou vencer em momento algum.

Nota: 7,0 


A DC Comics tem uma quantidade relevante de personagens de terceiro (ou até mesmo quarto) escalão que são interessantíssimos e apresentam características distintas dos mais famosos nomes da editora, principalmente se adentrarmos o campo mágico e/ou místico. O Deadman – no Brasil conhecido como Desafiador – é um deles. Criado em 1967 pelos estupendos Arnold Drake e Carmine Infantino é o fantasma do acrobata circense Boston Brand que consegue possuir corpos e fazer estes agirem como se fossem ele. Dono de um senso de humor bem afiado é aquele tipo de coadjuvante que sempre abrilhanta a história. Agora em 2019 a Panini Comics publicou em edição bacanuda de capa dura uma minissérie de 1986 com roteiro de Andrew Helfer e arte do magistral José Luis García-López. “Desafiador – Retorno à Eternidade” conta com 108 páginas de puro deleite da nona arte em uma história que une aventura, humor, honra, família, misticismo e mistério.

Nota: 7,5


“David Boring” do Daniel Clowes originalmente publicado em 2000 nos EUA pela Pantheon Books retrata com habilidade esse momento de final de século para um jovem do país. No meio da apatia, da infelicidade e da falta de perspectiva, o autor insere quantias generosas de fetiche, obsessão e uma respeitável e gloriosa falta de amor por convenções sociais. A editora Nemo que já havia lançado “Paciência”, “Como Uma Luva de Veludo Moldada em Ferro” e “Ghost World”, coloca mais esse título no mercado em uma edição com capa brochura e 144 páginas. O personagem principal que sai da cidade pequena para basicamente fugir da mãe se envolve em um fluxo de sexo, violência e alívios temporários para mascarar os desgostos existenciais que traz consigo. Dividida em 3 atos, “David Boring” explica parte das razões que levam o autor a ser um dos maiores nomes dos quadrinhos alternativos dos últimos anos.

Nota: 8,0






segunda-feira, 25 de novembro de 2019

Quadrinhos: "Busker", "Golias", "Squeak The Mouse" e "Lume"


Clay circula por São Paulo com o violão debaixo do braço e tocando pelas ruas, como tantos outros. No peito o anseio de viver de música, de mostrar a arte para uma quantidade maior de pessoas, de vencer usando o talento. É com essa trama que o designer e ilustrador Ryan Smallman estreou no final de 2018 com “Busker”, publicação independente de 48 páginas em preto e branco. A obra trata de um tema abordado várias vezes e poderia passar batida se não fosse pela suavidade e esmero que o autor utiliza no texto e arte. Mesmo com uma certa previsibilidade nos rumos, agrada e serve para aplacar um pouco o dia a dia tão permeado de notícias ruins. “Busker” é sobre sonhos, sobre acreditar, sobre seguir em frente mesmo quando o mundo diz não (como fala aquela música). E acima de tudo isso é sobre o poder das canções.

Nota: 6,0



A história de Davi e Golias é universalmente conhecida não somente por aqueles que leram a bíblia, mas por várias outras pessoas. A vitória da inteligência contra a força bruta, do pequeno contra o grande, do impossível contra o normal é retratada constantemente como analogia em diversas situações. Só que o quadrinista escocês Tom Gauld deu uma bela revertida nesse conceito, recontando as coisas de maneira diferente. Em “Golias” que a editora Todavia publicou esse ano no Brasil com 96 páginas, o gigante não quer saber de guerra ou briga, prefere a burocracia do que ir para a batalha. Contudo, devido ao seu tamanho e porte físico é deslocado para resolver os problemas da guerra, guerra aliás que é retratada com as irracionalidades e incoerências que lhe são inerentes. Usando poucas cores e traços simples, Tom Gauld faz uma releitura da parábola com fineza, humor e relevância aos nossos tempos.

Nota: 7,0

Instagram do autor: https://www.instagram.com/tomgauld/    


Massimo Mattioli nasceu na Itália em 1943 e faleceu em agosto desse ano. O cartunista e quadrinista foi um dos fundadores de revistas underground como “Frigidaire” e “Cannibale” e aqui teve trabalhos publicados na extinta e saudosa revista “Animal”. No primeiro semestre de 2019 (e antes da sua morte), a editora Veneta publicou uma edição de luxo com capa dura, 160 páginas e vários esboços de extras compilando tudo da dupla mais demente e desvairada já imaginada. “Squeak The Mouse” começou a sair no início dos anos 80 unindo violência, sexo e subversão com muita desordem e depravação sempre repetindo a mesma diagramação básica dos quadros. Como se Tom e Jerry estivessem sobre efeito de todas as drogas possíveis e existentes numa espiral de carnificina e libertinagem extremada indicada única e exclusivamente para leitores adultos. Por mais que algumas coisas tenham envelhecido mal ainda é uma obra com grande valor.

Nota: 7,5



O tempo passa, a juventude fica para trás e no meio da correria louca do processo de sermos adultos e pagar os boletos esquecemos de pessoas e momentos importantes que permearam essa fase complicada da vida. É sobre isso que a artista visual e quadrinista paulista Luiza Nasser conversa em “Lume”, trabalho independente de 68 páginas lançado no ano passado. Em preto e branco alternando os tipos e estilos de quadros e a força do próprio desenho a autora conta com extrema delicadeza uma relação que é bem provável que já tenha acontecido com você ou com algum amigo. Na busca por afirmação, por encontrar um lugar no mundo, por ter um ombro para recorrer quando a vida sai do trilho, de saber que você não está sozinho na vida é que “Lume” se destaca e vai um pouco mais além da sua premissa inicial e brilha de maneira ímpar.

Nota: 8,0





sábado, 23 de novembro de 2019

14o. Festival Se Rasgum - Belém (PA) - 31/10 a 3/11/2019



Vivemos tempos desanimadores, com nuvens mais e mais carregadas a cada dia que passa. As penosas vitórias conseguidas em busca de um país mais justo e igualitário para todos são derrubadas com uma velocidade impressionante e é só dar uma passeada nas redes sociais ou conversar com um grupo que não seja a própria bolha para a cabeça pesar e uma tristeza assumir o comando das ações. Mas, para tempos assim, existe a arte como alívio, a arte como instrumento de força. Sempre existiu e sempre existirá.

E foi isso que presenciei no 14º Festival Se Rasgum em Belém.

Realizado em 4 dias – fora as festas surpresas, aberturas, oficinas, cursos e bate-papos – o festival que é sinônimo mais do que nunca de resistência tendo em vista a longevidade e constante busca de melhora, exibiu em termos estruturais e de conforto algo igual ou maior do que estamos acostumados a ver em produções de grande porte país afora e finca assim de vez o pé no topo desse mercado. Com uma curadoria diversa e bem pensada, tivemos dias de risos, posicionamentos, afirmações, abraços, boas conversas, imposições e – claro - música, muita música.

Longe de querer passar uma varredura completa e detalhada de todas as atrações me concentro naquelas que mais me animaram, acalmaram ou chamaram a atenção, já registrando aqui o imenso pesar que foi perder o show do Suzana Flag tocando o disco “Fanzine” na íntegra no Pier da Casa das 11 Janelas em dia gratuito (31.10), que de acordo com todos os comentários que ouvi foi emocionante. Difícil acontecer isso novamente no futuro, infelizmente. Então, parto do dia seguinte que passou para o Espaço Náutico Marine Club e que no dia primeiro de novembro iniciou com um show do paraense Pratagy.

Logo depois, ainda antes das 21hs o Bazar Pamplona subiu ao palco para tocar as canções de um dos melhores discos do ano, o “Banda Vende Tudo”, que ainda contou com a participação luxuosa da Ana Clara e sua encantadora voz e persona em faixas como “Prumar”. Anna Suav & Bruna BG – que eu não conhecia – fizeram na sequência um show poderoso, com banda repleta de vigor e discurso forte e preciso. Na sequência os mineiros do Moons promoveram um dos shows mais bonitos do festival para mim, intercalando músicas dos dois últimos álbuns encheram o ar com melodia.

Talvez a atração mais esperada dessa edição e com um disco ao vivo recentemente lançado que recebe críticas positivas a todo momento, Gal Costa adentrou ao palco logo com “Dê um Rolê” e pouco depois com “Vaca Profana”, para já mostrar que a banda renovou as versões e deu gás em novas canções como “Motor” dos baianos no Maglore. Mesmo com um pequeno deslize cometido e consertado ao final com grande maestria e humildade, Gal encantou, fez dançar, cantar junto, abraçar a pessoa desconhecida ao lado. Fez o que se espera de uma artista do porte dela. A sexta ainda teria a energia do Mulamba e a malemolência dos Amantes (Jaloo & Strobo).

No sábado cheguei na hora do Dingo Bells (com um show bem insosso) e não vi o Nic Dias e Rakta. Na sequência veio a Brvnks que mesmo sem empolgar tanto o público fez um show do bom e velho indie rock e alegrou o coração por algumas dezenas de minutos. Com um clima totalmente diferente vieram os mineiros do Black Pantera, um rolo compressor em forma de power trio que aliou pancadaria sonora, simpatia e discurso enfático. Um dos shows da edição, sem dúvida. Depois do constrangimento que foi o show do Joe Silhueta, veio o combo do Mastodontes para trazer novamente as coisas para seu devido lugar. Outro grande show do festival, saíram do palco deixando o público ainda sem saber muito bem o que tinha acontecido. A Nação Zumbi que há tempos não vinha na mangueirosa encerrou a noite com um bom show, com Lúcio Maia reafirmando o músico fantástico que é, mas deixou a sensação que podia ter sido melhor.

Domingo - para o meu gosto - era o dia que menos animava. Festival é assim mesmo, você não tem como conhecer todos os artistas, admirar todos os estilos, curtir todas as atrações, você tem é que ir com a mente aberta para o que vier pela frente e estar disposto a se divertir acima de tudo. E assim foi o domingo desde o início com o brega (e outras cositas mais) do Farofa Tropikal com a presença do ícone Tonny Brasil. Depois foi a Larissa Luz que encantou com uma força tão imensa que não se sabia da onde estava vindo tanta massa sonora. Muito, mas muito mais potente que os discos, sem dúvida. Outro show para figurar entre os melhores dessa edição.

Na sequência os cariocas do Heavy Baile fizeram literalmente o chão tremer com o funk que estourava das caixas de som. Divertido a beça. Na apresentação seguinte a Tássia Reis que está com um belo disco lançado esse ano, não conseguiu transportar isso para o palco e ficou no meio termo. A noite de domingo e o festival se encerraria com os experimentalismos do Teto Preto e o vigor do Àttooxxá que subiu ao palco com a bandeira paraense estirada para receber a Keila (ex-Gang do Eletro).

O Se Rasgum é como aquele velho amigo que você passa o ano todo sem ver, mas sabe que quando se encontrarem vai rolar aquele abraço grande e virão sorrisos e novas histórias para serem contadas no futuro. É aquele amigo que você sabe que pode contar para aliviar a mente ao mesmo tempo em que reafirma suas posições enfaticamente e percebe que existem outras pessoas ao seu lado, que você não está só na briga. E ao sair do Espaço Naútico Marine Club durante o último show a sensação já era de saudade, mas também de expectativa para edição de 15 anos. Afinal, sobreviveremos a tudo e a arte será uma das forças do processo.

Por fotos do festival é só ir aqui: http://www.festival.serasgum.com.br/