terça-feira, 31 de março de 2020

Literatura: "O Golpe" e "Lake Success"


Simon Riske vive do jeito que quer e bem entende em Londres. Faz trabalhos esporádicos para bancos, seguradoras e o governo recuperando itens e objetos roubados ou achando pessoas desaparecidas, trabalhos esses que lhe rendem uma grana bem boa no final. Oficialmente possui uma oficina mecânica onde trata da verdadeira paixão que são os carros. Tudo anda mais ou menos dentro dos conformes até que um agente norte-americano invade seu espaço e chega com uma proposta de trabalho para lá de arriscada: ir atrás de uma pasta roubada de maneira espetacular de um príncipe saudita em plena Paris. Ele não aceita o caso em um primeiro momento, entretanto quando vê que um antigo desafeto está envolvido nesse roubo, parte para a complicada caçada. “O Golpe” (The Take, no original) é uma publicação da editora Arqueiro de novembro de 2019 com 384 páginas e tradução de Marcelo Mendes. O livro do escritor Christopher Reich é um suspense de espionagem com boa quantidade de ação e algumas reviravoltas embutidas lá pelo meio. Situado principalmente em Londres, Paris e Marselha conta com várias traições e utiliza a política como motivadora dos fatos em uma trama conspiratória envolvendo Rússia, Arábia Saudita e EUA. É um thriller que mistura assaltos, perseguições e espiões na linha de grandes trabalhos do estilo, mas com um brilho bem menos intenso. Contudo esse brilho menos intenso não tira o prazer de uma leitura rápida e sem maiores atribulações para passar o tempo e nem desagrada aos fãs do estilo.

Nota: 6,0

Leia um trecho:


Ambientado nos EUA durante o fatídico ano de 2016 - o ano da eleição que levou Donald Trump a presidência - é que se desenvolve o romance mais recente do escritor Gary Shteyngart intitulado “Lake Success” que a editora Todavia publicou no Brasil em 2019 com 448 páginas e tradução do André Czarnobai. O fato de se passar durante 2016 e indo das desconfianças e receios das primárias até chegar a controversa vitória é importantíssimo na história e serve como um coadjuvante de destaque. O personagem principal é o narcisista, covarde, palerma e milionário Barry Cohen que administra um fundo multimercado perdendo de modo constante dinheiro de várias pessoas e sendo muito bem recompensado por isso. Acuado por denúncias, decisões profissionais equivocadas, com o FBI de olho, sem saber lidar com o filho pequeno que é autista e sem qualquer relação maior de afeto com a esposa, resolve infantilmente jogar tudo para cima e embarcar (quase) sem nada em um ônibus da empresa Greyhound para cruzar o país em uma busca nostálgica e sem sentido que serve para disfarçar o medo. No livro o EUA é um país que recompensa as piores (e mais imbecis) pessoas e uma sociedade onde os vilões têm mais chance de vencer. Usando de um humor bastante ácido e mordaz em busca de alguma redenção que seja, “Lake Success” narra essa história de egoísmo, abandono, superficialidade, impunidade e amor de maneira interessantíssima ainda que em determinadas partes a verborragia do protagonista quebre demais o ritmo.

Nota: 8,5

Assista ao hilário vídeo de divulgação com o autor e o Ben Stiller: 

domingo, 29 de março de 2020

Literatura: "Mulheres Empilhadas" e “Vozes de Tchernóbil - A História Oral do Desastre Nuclear”


Após ser agredida pelo namorado, uma jovem advogada paulista embarca para o Acre para acompanhar um mutirão de julgamentos de mulheres assassinadas naquele estado a pedido do escritório em que trabalha que está fazendo um estudo nesse sentido. Ao chegar para a missão e carregando dentro de si problemas pessoais tanto do presente quanto do passado se envolve no caso de assassinato de uma jovem indígena por três playboys da cidade e a partir disso as coisas entram em uma espiral gigantesca de acontecimentos que a levarão para caminhos outrora nunca imaginados. “Mulheres Empilhadas”, novo romance da escritora Patrícia Melo, usa o descrito anteriormente como ponto de partida, mas se estende por diversos prismas e por conta da maneira que isso é apresentado entra com méritos no rol dos melhores trabalhos da autora. Publicado em 2019 pela editora Leya com 240 páginas exibe uma narrativa dura e pesada com Patrícia assumindo uma postura potente e incisiva enquanto conversa sobre impunidade, hipocrisia, corrupção, feminicídio, direitos indígenas e questões de gênero. Questões essas que além de todas as desigualdades sociais e econômicas existentes no país, apresentam também uma clara constatação da facilidade com que as mulheres são mortas aqui. Como diz determinada parte do livro: “Não importa onde você esteja. Não importa sua classe social. Não importa sua profissão. É perigoso ser mulher.” Ainda mais em uma nação que nos últimos anos despreza isso de modo inconsequente e criminoso sem ações efetivas para mudar esse cenário descrito de forma avassaladora no livro.

Nota: 8,0




Existem livros em que seguir em frente é tarefa árdua, não por ser mal escrito ou tratar de um assunto irrelevante, mas sim por apresentar uma história tão implacável e dolorosa que é impossível ler com rapidez, sendo preciso parar e respirar com frequência depois de algumas páginas. É o caso do “Vozes de Tchernóbil - A História Oral do Desastre Nuclear” da vencedora do prêmio Nobel de Literatura Svetlana Aleksiévitch, publicado em 2016 pela Companhia das Letras com 317 páginas e tradução de Sônia Branco quando completou 30 anos da catástrofe. A autora bielorussa levou 10 anos para concluir a obra que originalmente foi publicada em 1997 e optou por passar pelo fato em si e focar no universo em volta, nas histórias omitidas e na mudança drástica do cotidiano. São relatos de pessoas de diferentes profissões e classes para montar uma fotografia poderosa de uma guerra invisível contra um inimigo de aspecto completamente diferente e que eles não estavam preparados para enfrentar. Paralelamente traça um panorama político e social da época, enquanto aproveita para mostrar toda a inépcia, covardia e egoísmo do governo que escondia a verdade inundado com o medo de perder o poder e fazendo com que o povo sofresse muito e pagasse com a própria vida no decorrer dos anos. É um livro sobre memória, sobre lembranças, sobre pessoas que tiveram o medo ocupando o lugar do amor nos seus corações e que serve como lição para o momento em que passamos hoje no mundo.

Nota: 9,0

segunda-feira, 23 de março de 2020

Literatura: "Como a Democracia Chega Ao Fim" e “Barbed Wire Kisses – A História do Jesus And Mary Chain”


“Como a Democracia Chega Ao Fim” (How Democracy Ends) do escritor e professor de política da Universidade de Cambridge David Runciman foi publicado em 2018 nos USA e recebeu edição nacional no mesmo ano pela Todavia Livros com 272 páginas e tradução de Sergio Flaksman. Diferente de outros livros lançados no mesmo período, o tom do autor é levemente menos pessimista em relação aos abalos sísmicos que a democracia sofre nas mãos de indivíduos como Viktor Orbán na Hungria, Recep Erdogan na Turquia e Donald Trump nos EUA. Esse “otimismo” não é por crer nos nomes em questão, mas em outras amarras, conjunturas e cenários. Evidente que a obra foi provocada pela conturbada eleição no seu país, contudo estende-se plenamente para o restante do mundo (inclusive para nós). Na sua concepção a história não andaria para trás (mas não é o que estamos vendo) e os alvos focados como perigosos estão equivocados. A democracia só ruiria de vez por outros fatos como o mau uso da tecnologia ou uma possível calamidade. Lógico que quando escreveu o autor não imaginaria o atual cenário de pandemia e crise mundial que estamos atravessando, mas, mesmo assim com bastante fluidez ele deixa claro esboços provenientes disso. Das suas considerações, questionamentos e afirmações em meio a concordâncias e discordâncias que possamos ter, a mais importante talvez seja a colocação que a democracia pode entrar em falência mesmo permanecendo intacta na essência geral, disfarçada como tal. E em grande escala é o que presenciamos nesse momento.

Nota: 7,0


Em junho de 2019 os irmãos Reid desembarcaram no Brasil para mais um show em terras paulistas e na esteira disso a editora Sapopemba estreou no mercado com a publicação de “Barbed Wire Kisses – A História do Jesus And Mary Chain” da escritora (e baterista) escocesa Zoë Howe com 328 páginas, tradução de Letícia Lopes Ferreira e com direito a um prefácio exclusivo para a edição brasileira do baixista Douglas Hart, integrante da banda entre os anos de 1984 e 1991. Para quem é fã do som barulhento, melódico e repleto de microfonia da dupla escocesa que rendeu verdadeiras obras-primas como “Psychocandy” de 1985, “Darklands” de 1987 e “Stoned & Dethroned” de 1994 (e nenhum disco ruim na carreira, ressalte-se aqui), o livro é um prazer absoluto, daqueles que ao se ler um capítulo, volta para ler de novo. Desde adolescentes na pequena e sem futuro East Kilbride, cidade perto de Glascow, até os palcos do mundo todo passamos pelas (muitas e muitas) brigas, pela formação das ideias musicais, pelas (diversas) loucuras e bebedeiras, pela pancadaria dos shows do início que lhes deu fama, pela elaboração de uma arte feroz e doce ao mesmo tempo e por pouquíssimas concessões mercantis ao conduzir a carreira, o que soma-se ao extenso rol de coisas para se admirar desses dois esquisitões geniais. A autora ainda disponibiliza após o texto uma detalhada linha do tempo com várias notas para contextualização e a discografia completa com os créditos de cada gravação. Uma história e tanto.

Nota: 9,0

terça-feira, 17 de março de 2020

Quadrinhos: "Heróis Em Crise", "A Nova Califórnia", "Os Olhos de Barthô" e "Apanhadores de Sapos"

 

Tom King é hoje um dos melhores roteiristas das grandes editoras. São vários acertos na carreira: Batman, Senhor Milagre, Visão, O Xerife da Babilônia. Então quando ficou à frente de “Heróis em Crise”, a saga da DC publicada nos EUA entre novembro de 2018 e julho de 2019 que saiu aqui ano passado pela Panini Comics em 5 edições, a expectativa era boa, também por conta do argumento geral que reside em heróis e vilões sendo atendidos por uma “instituição” para tratar de estresse pós-traumático e depressão. No entanto, dessa vez Tom King errou e errou feio. Começa até bem nas duas primeiras revistas, mas o negócio desanda de tal maneira que além de confusa e mal alinhada, a trama força a barra mais do que o normal. A arte de Clay Mann é no máximo correta e não ajuda em nada o resultado que é para lá de decepcionante.

Nota: 2,0


Uma pequena e pacata cidade do interior onde as águas rodeiam e todos habitantes se conhecem tem a suposta tranquilidade e paz reviradas do avesso quando um novo morador chega e fica trancado em casa a sós com experiências que ninguém sabe ao certo o que são. Quando essas incursões científicas pouco a pouco passam ao conhecimento da população, a ganância e a natureza mesquinha das pessoas tomam conta das ações de modo abrupto. “A Nova Califórnia” é uma adaptação em quadrinhos escrita e desenhada pelo Daniel Araujo em cima do clássico conto de 1910 do escritor Lima Barreto. A obra que já ganhou várias releituras recebeu no ano passado uma das melhores nessa versão, tanto no que concerne a arte quanto a condução do roteiro que demonstra com certo humor embutido como as pessoas trazem consigo um egoísmo e maldade que podem emergir em qualquer momento da pior forma.

Nota: 7,0



Barthô é um cara grandão, forte, mas muito ingênuo e sem maldade no coração. Para ele tudo é bonito, todas as pessoas são legais e o mundo é um lugar sempre bacana de estar. Seu melhor amigo é Nicola que ao contrário é cheio de segundas intenções, pensamentos estapafúrdios e com uma visão de mundo mais cruel. Até que por conta disso, ao achar que está fazendo o bem, o protagonista se mete em uma grande roubada e vê a cabeça degringolar quando precisa lidar com o acontecido. É isso que vemos em “Os Olhos de Barthô” do quadrinista Orlandeli publicado de modo independente em 2019 com 97 páginas. Em mais um trabalho encantador e com uma arte exuberante o autor fala sobre bem e mal, sobre os nossos complicados dias atuais e sobre como o mundo pode ser sim um bom lugar. Nem que seja por um breve momento.

Nota: 7,5



E o Jeff Lemire conseguiu de novo. Já está até meio repetitivo elogiar o trabalho do canadense. Em “Apanhadores de Sapos” que a editora Mino publicou no final do ano passado com 112 páginas em capa dura, ele arregimenta uma fábula fascinante a respeito do envelhecimento e das memórias que ficam (ou não) quando as coisas realmente se encaminham para o final. Em conjunto a isso versa de modo singelo e delicado sobre o poder que cada escolha tem no decorrer da nossa jornada no mundo e trata dos arrependimentos que nos perseguem durante isso. É outro grande trabalho de um autor que parece ter um baú inesgotável de grandes histórias para contar (ainda bem) e que aqui se dá o direito de apresentar uma arte um pouco mais experimental. Uma obra para ler, refletir, ler de novo e dar uma olhadinha para o lado, para aqueles que vivem perto.

Nota: 9,0

Site da editora Mino: http://www.editoramino.com