terça-feira, 10 de junho de 2014

Uma velha amiga chamada Copa do Mundo

Era tarde de 21 de junho de 1986. Estava eu então com 7 anos e alguns meses e não parava de chorar no pátio da casa dos meus pais. Lembro de uma das minha irmãs me consolando, de um monte de gente bufando ferozmente contra o Zico, de ver a decepção entalhada no rosto dos meus amigos e de especialmente um garoto da rua subindo na escada para cortar a ornamentação da nossa rua que tanto tempo levou para ser construída e tanta diversão nos trouxe. Essa data foi o dia em que a França de Platini, Amoros e Giresse acabava de vez com aquele sonho de ser campeão do mundo que ainda passava pela cabeça de Edinho, Sócrates, Júnior, Zico e Falcão.

Minha memória é ótima para guardar momentos e essa foi a primeira experiência que tive com essa tal de Copa do Mundo. Eu morava em Castanhal nessa época (cidade para a qual praticamente voltei agora), a 70 e poucos quilômetros da capital Belém, e meu universo se resumia praticamente a futebol. Meu pai, sendo um excelente jogador que só deixou de bater sua pelada com mais de 60 anos quando a doença apareceu, era apaixonado por bola e transferiu isso para o seu único filho homem, também conhecido como eu. Torcia para o Paysandu e Flamengo e sempre me encantava com as histórias dos seus títulos, como também por histórias de ídolos como Garrincha, Quarentinha, Ademir da Guia, Dida (que pare ele foi melhor que Pelé) e, lógico, Zico.

Para mim, nessa idade, o Galinho de Quintino era a personificação maior do esporte. Ídolo quase sem contestação. Por isso que enquanto eu chorava em junho de 1986 no pátio, ninguém ali sabia que a minha tristeza era não somente pela desclassificação da seleção e o término de todo o clima festivo, mas também era porque me sentia traído por Zico. Como logo ele podia perder um pênalti que nos levaria a vitória? Como logo ele podia assim do nada acabar com a alegria de toda a minha rua? Na idade que tinha ainda não entendia os fatos de que ele entrara no segundo tempo, deu o passe para o Branco sofrer o pênalti e perdeu este sim, mas se redimiu e fez depois, sendo que na verdade o pênalti que nos deixou fora foi cobrado pelo zagueiro Júlio César. Fiquei “de mal” com Zico até o título do Flamengo em 1987. Eu era um garoto, pobre do Zico.

E agora essa tal de Copa do Mundo que experimentei pela primeira vez há 28 anos vai começar novamente. E aqui no Brasil. Quero deixar bem claro que esse não é um texto crítico ou político (e nem intenção de ser), é um simples exercício de saudade, nada além disso. Concordo plenamente com todos os protestos (apesar de achar que agora já não servem para muita coisa), mas também entendo que é fundamental que esses protestos e esse nosso despertar cívico não pare agora na Copa do Mundo, mas que continue por todo o ano, por toda a vida. No meu trabalho com órgãos públicos estou calejado de ver os desmandos de políticos e seus asseclas em todas as esferas governamentais, e isso realmente tem que acabar. Porém esse texto não falará disso, deixo isso nas mãos de gente mais hábil.

Esse texto é sobre o futebol, sobre mim, sobre o meu pai, sobre a Copa do Mundo. É um texto de um apaixonado, um texto de um cara que hoje aos 35 anos ainda tem o futebol muito presente na vida. O futebol me trouxe amigos (e muitos estão comigo até hoje), paixões, alegrias, decepções, tristezas. O futebol, acima de tudo, foi o fio condutor de toda a relação que tive com meu pai falecido em 2006. Ele nos unia e por conta disso nossa relação foi boa e repleta de respeito, carinho e uma cumplicidade que minha mãe nunca iria entender. Foi assim quando aos 10 anos ele me presenteou com uma chuteira Adidas (caríssima na época) para a minha estreia na quarta zaga da escolinha do bairro. Investiu como pode, mas infelizmente minha habilidade não prestava muita atenção nisso. Porém, mesmo sem ser um craque como ele fora e todos falavam, o futebol ficou e até hoje jogo minha bolinha duas ou três vezes por semana. E faço isso com toda a entrega do mundo.

E principalmente por essa relação, é que nunca, em nenhum momento vou torcer contra a seleção do meu país. E isso não é dar uma de Pacheco ou ser ufanista e patriota patético. Isso é simplesmente pelo futebol. Cresci torcendo pela amarelinha e não vai ser agora durante os 90 minutos de um jogo que vou deixar de fazer isso. Ainda mais em Copa do Mundo. Copa do Mundo que desde 1986 habita em um pequeno canto aqui dentro do meu corpo. O futebol de hoje não tem mais o romantismo de antes, isso é certo. É muito mais um negócio. É pop. Extremamente pop. Craques como Cristiano Ronaldo, Messi e Neymar não podem ser comparados no quesito mídia com outros de décadas anteriores, mas isso não me impede de torcer como sempre fiz. Triste de mim seria se isso acontecesse.

Na Copa seguinte a decepção de 1986, a de 1990, eu já entendia mais um pouco sobre tudo a minha volta e foi com raiva que vi a seleção cair diante da Argentina com um gol do Caniggia depois do passe do Maradona. Lembro-me do meu pai cabisbaixo nesse dia como poucas vezes vi. No entanto, em 1994 viria a forra. Depois dos pênaltis (que meu pai escutou sozinho no rádio trancado dentro do carro) a explosão de alegria era igual do Galvão Bueno enlouquecido na tevê. Nesse dia fiquei bêbado, a primeira vez de tantas na adolescência (e tantas após isso), tudo culpa de Romário e cia. A Copa de 1994 representou um marco para minha geração, futebolisticamente falando. Era um confronto de ideias, a criação de novos ídolos, e a esperança de que dali em diante tudo poderia ser melhor. Tudo mesmo. Adolescentes sempre acham que podem tudo.

Já em 1998 tudo foi programado. Assisti a maioria dos jogos em casa com uma imensidão de amigos. No jogo contra a Holanda na semifinal (aquele em que o Zé Carlos jogou), os pênaltis mereciam uma foto. Umas 20 pessoas ajoelhadas de mãos dadas rezando para São Taffarel, que ouviu nossas preces. Na final, meu pai chegou comigo e falou para convidar todo mundo para almoçar em casa que ele ia pedir para a mãe fazer uma feijoada e um mingau de milho (época de festa junina sempre tem). A turma chegou cedo e começamos a beber, nos espantamos com o drama do Ronaldo e ficamos tensos sobre o que viria a seguir. Meu pai que não bebia comprou equivocadamente algumas cervejas sem álcool e também fazia sua parte. Eu capotei bêbado no início do jogo e só acordei no finalzinho quando estava 3 a 0 e a tristeza já tomava conta da casa. Até hoje nunca quis ver esse jogo todo.

Em 2002 tudo parecia sorrir para mim. Amores se concretizando, trabalho deslanchando, a vida seguindo seu rumo. Os jogos de madrugada me impediram de assistir com meu pai, pois trabalhava e morava em outra cidade e a final assisti na casa de um amigo, mas logo após o jogo corri para lhe dar um abraço. Durante essa copa vivi mais do que todas as outras, sem dúvida alguma. Grandes tempos. Em contrapartida a esse momento da minha vida, o câncer já começava a perturbar bem o meu velho nessa época e ele vivia dizendo que não veria mais nenhuma copa. Aquilo soava pesado aos meus ouvidos, saber que aquele momento único que sempre cultivamos juntos sorrindo ou chorando não iria mais se repetir. Não cansava de repetir para ele que isso não ia acontecer. Que ele ainda veria o Brasil ser hexa.

Em 2006 no jogo em que o Henry fez o gol e desclassificou o Brasil eu estava fora de casa, mas voltei para ver o jogo ao seu lado, que já com a doença em estado avançadíssimo ficou no quarto conversando comigo. Depois da derrota, bateu aquela dor de saber que realmente ele estava certo, que aquela seria sua última copa do mundo. A raiva que tive de Ronaldinho Gaúcho, Adriano, Roberto Carlos e Ronaldo naquele dia era extrema. Era irracional. Não só por ter perdido o jogo em si, mas por eles terem privado meu velho de ver o Brasil campeão novamente, de terem me privado de mais uma vez abraçá-lo e gritar “É Campeão!”. Uma raiva que superava e muito a do garoto de 1986 com Zico. Meu pai faleceu em 11 de julho daquele ano e a horrível final entre Itália e França foi no dia 9, ou seja, se o Brasil chegasse ele ainda teria visto.

2010 foi a primeira Copa do Mundo sem meu pai. E a derrota para a Holanda foi dura, potente, forte como uma grande sequência de chutes no estômago. Enquanto os analistas teciam suas teses na televisão sobre a derrota, eu ficava pensando se era justo perder aquele jogo, mas me lembrava que meu pai sempre falava que justiça não combina com futebol e essa é sua graça. Eu sabia disso desde garoto quando ouvia ao seu lado no rádio a transmissão dos jogos do Flamengo na Rádio Globo com o garotinho José Carlos Araújo narrando. Meu pai me ensinara. Assim como me ensinara a ser justo, correto e simples. Assim como me ensinara a vida toda o prazer de ver um jogo de futebol, de chutar uma bola, de conversar com os amigos depois. Meu pai me deu o futebol, isso é certo, e por isso lhe serei eternamente grato.

Dessa maneira, e aqui deixo claro que não repreendo ninguém por uma escolha diferente da minha, não tenho como torcer contra o Brasil, repito novamente. Torcer para a seleção canarinho está acima da CBF, da FIFA, dos políticos e suas falcatruas. São coisas distintas. No ano passado, dia 30 de junho de 2013 estava no Maracanã com mais de 70 mil pessoas na final das Copa das Confederações vendo Fred, Neymar, Thiago Silva, David Luiz e Paulinho arrasarem com a Fúria Espanhola. Um baita show. Senti a mesma emoção e alegria de quando vi o show do Paul McCartney, ou o do R.E.M. Emocionante pra cacete.

E, neste momento, mesmo sem saber se esse ano irei para algum jogo ou não (já que não consegui ingresso apesar das inúmeras tentativas), a partir do dia 12 de junho de 2014 estarei de peito aberto, ouvidos atentos e olhos interessados na Copa do Mundo. Me permito sim deixar que esse sentimento de esperança e de alegria invada um pouco o meu corpo, e me faça ser mais feliz junto com essa velha amiga chamada Copa do Mundo seja em família, nos bares com os amigos ou no pensamento constante de cumplicidade com meu pai.

Então, anote aí. Vamos ser hexa, meu velho. Torça de onde estiver. Vou lhe acompanhar daqui.

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