sexta-feira, 26 de setembro de 2014

"Malcolm" - Fabio Massari e Luciano Thomé

“Malcolm McLaren. Ninguém tem uma opinião fria sobre o homem: ou ele era o ser mais abjeto que já pisou na terra, um oportunista que descartava seus artistas assim que eles não mais lhe serviam, ou era um gênio absoluto, capaz de usar a mídia a seu favor de uma maneira que ninguém, até hoje, aperfeiçoou. Talvez ele fosse as duas coisas ao mesmo tempo.”

O pequeno texto acima está na contracapa de “Malcolm”, álbum em quadrinhos lançado no início desse ano pela Edições Ideal. Foi extraído do posfácio escrito pelo André Barcinski e ilustra muito bem a controversa pessoa de Malcolm McLaren, figura única no mundo do entretenimento dos últimos 50 anos, pelo menos. Falecido em 2010, ele foi empresário, produtor musical, agitador cultural, artista, criador de moda, entre outras coisas mais. E foi essa personalidade ímpar que desembarcou nos estúdios da MTV Brasil em São Paulo durante o ano de 1995.

No mesmo dia o jornalista Fabio Massari foi avisado dessa visita e se preparou para encarar uma missão complicada à primeira vista, mas que se tornou bem agradável durante o curso da entrevista ali feita, que de quinze minutos previstos inicialmente se espalhou por mais de cinquenta. McLaren estava na teoria lançando seu mais recente disco chamado “Paris” (de 1994), mais a conversa se espalhou por assuntos bem diferentes desse, fazendo uma espécie de compêndio da carreira dele até ali.

Na época, só alguns trechos foram ao ar na MTV e a gravação da entrevista ficou guardada pelo Fabio Massari para ser usada posteriormente. O resultado ganhou corpo dezenove anos depois. E em um formato até certo ponto inusitado: em quadrinhos. Feita em conjunta com o quadrinista gaúcho Luciano Thomé, “Malcolm” é um grande acerto. O formato casou muito bem com o teor da entrevista e a originalidade do personagem principal. Méritos a Thomé, que em preto e branco e com um traço quase anárquico, conseguiu repassar visualmente tudo muito bem, com várias inserções externas, caricaturas e referências.

Fabio Massari que já havia lançado em 2013 o livro “Mondo Massari – Entrevistas, Resenhas, Divagações e Etc.”, volta novamente a carga com essa ideia, que é o primeiro projeto da coleção que administra (e leva o seu nome) dentro das Edições Ideal. O segundo livro dessa muito bem-vinda coleção inclusive já saiu, chamado “Nós Somos a Tempestade”, do jornalista Luiz Mazetto, que fala sobre o metal alternativo dos EUA. “Malcolm” tem capa dura e 68 páginas e mostra pensamentos relevantes do seu entrevistado mesmo tanto tempo depois. Mais uma ótima bola dentro do Reverendo.

Nota: 8,0

A editora liberou uma boa parte gratuitamente no seu site. Veja aqui:


terça-feira, 23 de setembro de 2014

"1973 - O Ano Que Reinventou a MPB" - Organização: Célio Albuquerque

Em 1973 o Brasil estava sobre o comando do General Emílio Garrastazu Médici. O golpe militar estava prestes a completar dez anos e o cenário, se por um lado apresentava o (ilusório, em vários aspectos) “milagre econômico”, do outro lado minava mais ainda as liberdades individuais e criativas naqueles anos conhecidos como de “chumbo”. A censura sobre produções culturais estava cada vez mais acentuada e eliminava (na maioria das vezes sem base alguma) frequentemente partes de canções, de discos, de peças, de filmes, de livros.

Apesar disso, o ano de 1973 foi fecundo na parte musical e mesmo com a censura no pé, discos memoráveis foram produzidos nesse ano. O jornalista Célio Albuquerque percebeu isso e idealizou e organizou um livro que disserta sobre esses registros. O resultado é o livro “1973 – O ano que reinventou a MPB”, lançado pela Editora Sonora efetivamente no início desse ano com 432 páginas, comemorando assim os 40 anos da concepção dos álbuns. Com direção editorial de Marcelo Fróes, 50 e poucos discos foram pinçados e resenhados por jornalistas, pesquisadores, músicos e outras pessoas do meio.

A ideia – muito boa na percepção – também se mostrou bem interessante na prática. Mesmo que você não compreenda a inserção de um álbum ou outro, ou não goste do teor do texto e das considerações de algum trabalho, no aspecto geral o livro agrada confortavelmente. Além de servir como um documento histórico desses trabalhos pelas histórias contadas e fichas técnicas completas fornecidas. Dispostos em ordem alfabética por nome do artista (exceção feita a primeira e a última redação), os escritos podem ser divididos em várias pequenas categorias.

Uma dessas categorias é a dos melhores textos. Nela se incluem as palavras de Vagner Fernandes sobre “Clara Nunes”, de Nilton Pavin e Sílvio Atanes sobre “Chico Canta (Calabar, o Elogio da Traição)”, de Antonio Carlos Miguel sobre “Quem é Quem” de João Donato, de Pedro Só sobre “Pérola Negra” do Luiz Melodia, de Sílvio Essinger sobre “Krig-Ha, Bandolo!” do Raul Seixas, além do texto final do Marcelo Fróes sobre discos que não foram lançados em 1973 por algum motivo (mas que seriam desse ano), como o “A e o Z” dos Mutantes e o “Banquete dos Mendigos”, clássico ao vivo com vários artistas.

Por serem textos mais extensos, dá para encaixar um pouco da vida do artista em questão, e quando isso ocorre sempre funciona, como no caso dos discos da Clementina de Jesus (que começou a cantar somente aos 63 anos) e do Elton Medeiros (que mesmo bastante conhecido só gravaria o primeiro álbum aos 43 anos). Uma outra categoria interessante é formada por aqueles discos meio esquecidos que o livro aproveita e joga luz, composta, por exemplo, pelos registros do quarteto formado por Beto Guedes, Danilo Caymmi, Novelli e Toninho Horta, assim como pelo álbum homônimo do Guilherme Lamounier, o “Matança do Porco” do Som Imaginário e o “Matita Perê” do Tom Jobim.

Contudo, existem alguns pequenos problemas no livro. Em uma reduzida leva de textos, os autores (competentes e qualificados, isso não se discute) acrescentam demasiada carga de admiração e paixão pelo álbum escolhido, até mesmo se inserindo em determinados momentos, o que acaba por não funcionar tão bem, deixando o teor meio maçante. Isso acontece nos textos sobre os discos de João Gilberto, Marcos Valle e Maria Bethânia. Em outros o, autor simplesmente não conseguiu fazer o conteúdo fluir, como ocorre em “Araçá Azul” do Caetano Veloso. Acontece.

Para quem gosta de música, e principalmente de música brasileira, “1973 – O ano que reinventou a MPB” é puro deleite. Mesmo que alguns discos você pessoalmente entenda que não mereçam tanto entrar nessa lista por conta do título do livro (casos do disco de sambas de enredo, do João Bosco, do Fagner e do Gonzaguinha), isso não afeta a obra. Passear por palavras sobre clássicos exuberantes como alguns já citados e outros como “Milagre dos Peixes” do Milton Nascimento, “Índia” da Gal Costa, “Nervos de Aço” do Paulinho da Viola e “Todos os Olhos” de Tom Zé, satisfaz bem. É daqueles livros para acabar de ler, guardar na estante mais próxima para futuras consultas e ligar o som para escutar aquilo que foi lido.

Nota: 9,0

Textos relacionados no blog:

- Literatura: “1001 Discos Para Ouvir Antes de Morrer” – Robert Dimery

- Literatura:  “The Art of The LP – Classic Album Covers 1955– 1995” – Johnny Morgan e Ben Wardle

terça-feira, 16 de setembro de 2014

"Bidu - Caminhos" - Eduardo Damasceno e Luís Felipe Garrocho

A relação entre o homem e o cachorro atravessou os séculos. Milhares de coisas já foram faladas sobre essa amizade, essa cumplicidade. Mesmo aqueles não muito chegados ao animal, tendem a reconhecer esse tipo de afinidade quando a veem. Para o escritor tcheco Milan Kundera (de “A Insustentável Leveza do Ser”), por exemplo, “os cães são o nosso elo com o paraíso”. Além dele, vários outros notáveis já demonstraram uma elevada quantidade de afeto oriunda dessa convivência.

Para Mauricio de Sousa, a relação era tamanha que foi um cachorro o primeiro personagem criado. O Bidu, que apareceu já com o seu dono, o Franjinha. A aparição inicial da dupla foi em uma tirinha inserida no jornal Folha da Tarde em 18 de julho de 1959. Bidu também foi a primeira concepção do autor a ter revista própria (ainda que de vida curta em 1960). O apego ao cachorrinho (que com tempo viria a se tornar azul) só cresceu e ele ganhou toda uma gama de personagens que vivem dentro do seu círculo.

Era questão de tempo então para que essa figura tão importante no universo de Mauricio de Sousa também ganhasse uma nova roupagem no projeto Graphic MSP que a Panini Comics vem publicando. “Bidu - Caminhos” é o quinto volume da série e sucede “Piteco - Ingá” do final do ano passado. A responsabilidade da elaboração dessa nova aparência ficou com a dupla Eduardo Damasceno e Luís Felipe Garrocho (de “Achados e Perdidos” e “Cosmonauta Cosmo”), que dividem o roteiro e a arte da HQ.

São 82 páginas onde vemos como Bidu conheceu seu dono e eterno amigo Franjinha. Das obras lançadas até agora, pode-se dizer sem medo que essa é a que tem o tom mais infantil de todas, o que necessariamente não chega a ser ruim tendo em vista a abordagem proposta. Como a história une a aventura com algumas outras vertentes, carrega no ar alguma semelhança com “Laços” dos irmãos Cafaggi, onde o quarteto de ferro de Mauricio de Sousa foi apresentado na Graphic MSP (e que ganhará continuação em breve).

Bidu está ali sozinho, sem muitos amigos ainda (mesmo que alguns personagens secundários já apareçam como Duque, Bugu e Dona Pedra) e tentando sobreviver atrás de comida e abrigo, além de fugir dos cachorros maiores e outros perigos de uma cidade. E a jornada que ele leva até conhecer o Franjinha é muito bem traçada, com uma arte limpa e tocante em alguns momentos (como na parte da chuva belamente retratada pela dupla de autores).

“Bidu – Caminhos” tem o tom certo para o personagem, não poderia ser diferente, tinha que ser mais puro e mais singelo mesmo. Vai agradar diretamente aos seus filhos, seus sobrinhos e aos amantes desse animal tão importante para a raça humana através dos tempos. Depois de ler, fica difícil não gostar do que Eduardo Damasceno e Luís Felipe Garrocho fizeram com o cachorrinho azul, por mais que a identificação pessoal não seja tanta assim.

Nota: 7,0

Textos relacionados no blog:


quinta-feira, 11 de setembro de 2014

"Os Invisíveis" - Grant Morrison e vários artistas

Nos últimos anos um dos projetos mais interessantes idealizado dentro das grandes editoras de quadrinhos foi o “Sete Soldados da Vitória” que o escocês Grant Morrison fez para a DC lá fora em 2005 e 2006 (aqui foi publicado pela Panini Comics em 8 edições no ano de 2007). Usando personagens do segundo, terceiro e quarto escalões ele entrelaçou uma história repleta de nuances e referências. Uniu aventura, magia, ciência, teologia, filosofia e muitas outras coisas que se delineavam como pequenas peças que existiam para funcionar junto com outras de maneira bem peculiar.

Porém, essa junção de personagens ambivalentes, com caracterização bem distinta permeando histórias repletas de outras realidades, assim como com a inserção de alusões aos mais diversos campos imagináveis não era novidade para o autor. Foi em “Os Invisíveis” que Grant Morrison fez seu trabalho mais sublime dentro dos quadrinhos. A série que originalmente foi publicada entre setembro de 1994 e junho de 2000, teve 59 edições espalhadas em 3 volumes e é uma espécie de história sobre “tudo”.

“Os Invisíveis” ganhou status de obra-prima com o tempo e muitos a consideram para Grant Morrison como “Sandman” é para Neil Gaiman, “Transmetropolitan” é para Warren Ellis ou “Watchmen” é para Alan Moore, o que faz bastante sentido. Aqui no Brasil nunca foi lançada na sua totalidade apesar de quatro tentativas feitas anteriormente por empresas distintas. Algumas conseguiram avançar um pouco mais, outras pararam antes da metade. Nas dezenas de sites de scans de quadrinhos que existem por aí, no entanto, muitos leitores tiveram seu contato total com a série.

A Panini Comics, dentro do selo Vertigo, parece agora finalmente querer publicar tudo por aqui (nos EUA houve a republicação completa em sete volumes), para tanto já colocou duas edições no mercado. “Revolução” tem 232 páginas e reúne os números de 1 a 8 dos originais, além de pequenos textos e duas seções de cartas escritas pelo próprio Morrison. Já “Abocalipse” apresenta as edições 9 a 16 e tem 212 páginas, com posfácio do Érico Assis onde ele conta a lendária história da carta que Morrison colocou na edição 16 solicitando aos leitores que se masturbassem em um dia escolhido por ele a fim de que a revista não parasse de ser publicada (a época não era lá muito boa para o mercado dos quadrinhos).

Se isso deu certo ou não, não pode-se afirmar, mas o certo é que as edições continuaram até onde o autor imaginava, e fez com que se tornasse referência tanto para os quadrinhos por conta das múltiplas experimentações narrativas e visuais, como também para outras searas como o cinema (o autor acusou os irmãos Wachowski de lhe copiarem na idealização de “Matrix”), e a televisão (“Fringe”, para ficar em um exemplo, tem ocasionalmente uma ideia ou outra espalhada pela sua superfície).

A trama de um grupo de revolucionários completamente desiguais entre si que lutam contra uma espécie de ordem que comanda o mundo e faz todos pensarem que aquela é a verdadeira realidade, ainda hoje fascina ao se reler essas primeiras edições (e depois só melhora, pode confiar). Personagens como King Mob e Jack Frost carregam aquele poder de se tornarem únicos. A inserção de “tudo e um pouco mais” do autor que nesses volumes iniciais ressuscita a escritora Mary Shelley, o poeta Lorde Byron, o controverso Marquês de Sade e os ex-beatles Stuart Sutcliffe e John Lennon (em uma sacada magistral), deixa a trama mais intrigante ainda.

Tentar descrever a história mais do que isso seria além de uma tarefa (bem) espinhosa, algo que resultaria em um texto imenso, vide o tamanho de correlações, menções e referências que a permeiam e lhe servem como base. O ideal mesmo é ler as revistas e mergulhar dentro da intrincada mente de Grant Morrison. Mas, antes disso, prepare-se, pois a viagem é repleta de loucura, fantasia, encantamento e brilhantismo.

P.S: Muitos artistas foram responsáveis pela parte visual nessas 16 edições citadas acima (o que foi uma constante durante todo o período de existência da série), porém o maior destaque fica com Jill Thompson, brilhante em várias passagens.

P.S (bônus): Bem que “Sete Soldados da Vitória” poderia também ganhar uma republicação em edição especial. Merece bem.

Nota: 9,5


Site oficial do autor: http://www.grant-morrison.com                  

quarta-feira, 3 de setembro de 2014

"Pessoas Que Passam Pelos Sonhos" - Cadão Volpato

Dois homens completamente distintos em uma primeira análise. Estilos de vida, visuais, profissões, pretensões, residência, países. Nada disso parece levar a crer que pode se formar uma amizade ali. Rivoli é alto, quase um sueco, arquiteto, estudado e mora em São Paulo. Tortoni é de estatura média, comum, taxista meio por acaso, oriundo de família humilde e mora em um subúrbio de Buenos Aires. Mas, por caminhos flutuantes a vida desses dois personagens se une em “Pessoas Que Passam Pelos Sonhos”, o novo livro de Cadão Volpato.

Publicado no ano passado pela Cosac Naify em um formato menor, muito bonito e com tratamento visual igualmente esbelto, o livro tem 318 páginas. É o sexto trabalho de Cadão Volpato na área da literatura. Anteriormente, tinha lançado quatro livros de contos e um infantil. Músico (da excelente banda Fellini, entre outros projetos), ilustrador, jornalista e apresentador de tevê, o autor hoje com 57 anos sempre se mostrou uma figura de inteligência natural e com uma maneira bem distinta de enxergar o mundo.

Essa maneira um pouco diversa de enxergar as coisas está presente em “Pessoas Que Passam Pelos Sonhos”. Nele, Volpato compõe os dois personagens isoladamente no início, os ambientando em suas cidades, convicções, famílias, desejos e insatisfações. Depois os une em uma viagem insólita para a Patagônia atrás de um hotel no final do mundo. Essa jornada meio sem sentido rende momentos que variam entre o desesperador e o fantasioso e serve para moldar uma amizade instantânea que daquele momento em diante parece distraída a continuar.

Dividido em três atos, o livro tem a ditadura no Brasil e na Argentina nos anos 60 e 70, como um espírito do mal que está ali influenciando atos, definindo rumos e destroçando aspirações de um futuro. Esse tema espinhoso e complicado de ser tratado ainda nos dias de hoje é colocado de modo sábio pelo autor, que o deixa ali na escuridão, nas entrelinhas, naquilo que não é escrito. Com sentenças curtas e muitos detalhamentos, a narrativa em terceira pessoa se constrói pouco a pouco ao se espalhar por amigos e familiares, como também por desconhecidos quase delirantes.

Em seu primeiro romance puro, Cadão Volpato usa pessoas comuns e nada extraordinárias para arquitetar algo que não é fácil de ser lido ou digerido com rapidez. O leitor precisa prestar atenção nos detalhes, nas leves convergências que a trama vai sugerindo, nos sonhos que vão sendo deixados no meio do caminho por cansaço, azar ou por fatos ríspidos do famigerado destino. Também podemos levar a palavra “sonho” para os pensamentos quebradiços que os personagens se agarram em certas passagens. E é justamente esses fatores que fazem da sua criação um livro lírico e encantador.

Nota: 8,0

Site oficial do autor: http://www.cadaovolpato.com.br

quarta-feira, 27 de agosto de 2014

9o. Festival Se Rasgum - Belém (PA) - 20 a 23 de Agosto de 2014

Na sua nona edição o Festival Se Rasgum mudou o período de realização. Do final do ano se transportou para o meio de agosto, mais uma das muitas alterações sofridas durante os anos. O processo constante de evolução para tentar ajustar tudo da melhor maneira possível continuou, mesmo que com alguns deslizes. Se manteve a ideia de espalhar a programação em vários dias e locais, com a redução do domingo na agenda e a manutenção da quarta em um teatro e a quinta ao ar livre gratuitamente na Estação das Docas. A sexta e o sábado continuaram no formidável espaço do Hangar.

Os deslizes citados residem basicamente nos atrasos de sexta e sábado (este último começou na hora, mas foi se defasando depois), que fizeram com que os shows do Vanguart e do Arnaldo Antunes previstos para uma e meia acontecessem próximos das três da manhã. Um dos pontos altos da edição do ano passado foi justamente a falta de atrasos. Outro ponto negativo foi o acesso ao palco secundário (deck). Com atrações de apelo considerável junto com o fato do público em bom percentual se dirigir para lá para fumar, o acesso ficou complicado e algumas pequenas decisões como uma colocação diferente do bar poderia ter ajudado mais nisso. Ver alguns shows exigiu certo perrengue que contrastava com o conforto do palco principal. A maratona de dez bandas também poderia ser reduzida em pelo menos uma por dia para facilitar as coisas (e isso não faria definitivamente falta alguma). Nesses dois últimos casos, tudo indica que o Festival ficou grande demais (via a quantidade de público presente) e a solução para o palco secundário deve ser repensada para 2015.

No mais, tivemos ótimos shows divididos pelos quatro dias em um festival que o astral parece melhorar a cada ano. A praça de alimentação e a feirinha melhoraram mais (ainda que possa ser melhor ainda) e o acesso continuou tranquilo para todas as instalações. A escalação musical, matéria prima principal, mais uma vez privilegiou a diversidade, o que é sem dúvida alguma a grande sacada do evento, sempre dosando muito bem grandes nomes nacionais com outros alternativos e/ou obscuros, sem esquecer da adição da música paraense em grandes doses.

Abaixo falo um pouco de cada dia e dos shows que vi:

Dia 1 – 20 de agosto – Quarta – Teatro Margarida Schivasappa (Centur)

O festival iniciou com o show da paraense Camila Honda lançando o primeiro disco e seu pop, poses e danças fofinhas, apoiada em uma hábil banda composta por Léo Chermont e Arthur Kunz (Strobo), Marcel Barreto e Mauricio Panzera, mas que acaba não rendendo tudo que se espera dela, ficando limitada pela proposta sonora.

Na sequência veio Antonio Novaes, também mostrando as músicas do primeiro trabalho solo. Quem já conhece o trabalho do músico dos tempos da banda A Euterpia se sentiu em casa, já que seu trabalho solo é uma extensão imaginável dessa época. As experimentações sonoras e fonéticas continuam e se ampliam, com um duelo feminino no vocal (Cacau Novais foi essa contraparte) e a adição de um trio de metais. Arrigo Barnabé, erudito, música paraense, Itamar Assumpção, jazz e latinidade. Tudo isso você encontra na música de Novaes. Foi um show bem interessante que contou até com uma versão de “Dentro da Caixa” da sua ex-banda.

Fechando o primeiro dia, o gaúcho Nei Lisboa subiu com um trio de comparsas na bateria/percussão, guitarra e teclados, que adicionados ao seu violão promoveram um dos grandes shows do festival. Talvez tenha funcionado mais para quem já conhecesse as canções e o trabalho, mas mesmo assim foi quase impecável. Nei Lisboa, que ali pelo final dos anos 80 podia ter entrado no rol dos grandes da mpb se assim tivesse quisto, continua em boa forma. Entre as boas composições do disco “A Vida Inteira” do ano passado, entrecortou pequenos clássicos pessoais como “Baladas”, “Faxineira”, “A Fábula (Dos Três Poréns)", “Telhados de Paris”, “Verão de Calcutá” e “Relógios de Sol”. Bem bonito de se ver. E de se ouvir.

Dia 2 – 21 de agosto – Quinta – Estação Das Docas

O segundo dia foi ao ar livre no complexo da Estação das Docas com a baía de Guajará como testemunha. Clima leve e solto no ar, com uma parte do público que não é usual ao evento mas que interagiu e se entregou da maneira que pode.

Começou com o show da banda instrumental paraense Ultranova, que mesmo qualificada tecnicamente produz um som chato e sem graça alguma. Completamente passável. Depois foi a vez dos cariocas do Biltre que também não disseram muita coisa. Som datado, com humor forçado e brincadeiras de palco beirando o ridículo. Foi só com a entrada da Camarones Orquestra Guitarrística de Natal no palco que a quinta começou musicalmente (mesmo que em volta a festa já tivesse começado bem antes). Show forte, poderoso, um instrumental funcional e enérgico que convenceu até quem não gosta de rock. Para encerrar a noite, foram os pernambucanos da Orquestra Contemporânea de Olinda que subiram ao palco. Quem já viu algum show da banda sabe do poder dela ao vivo. E em Belém não foi diferente. Fez todo mundo dançar, da criança ao velhinho, do indie ao bregueiro, do chato a miss simpatia. Uma apresentação digna de uma nota altíssima, que serviu para deixar todo mundo feliz e preparado para as missões que se avizinhavam para os próximos dias.

Dia 3 – 22 de agosto – Sexta – Hangar

Os paraenses da República Imperial abriram os serviços na sexta, já com um bom atraso. E a mistura de ritmos e poesia que o grupo ambiciona fazer é legal e tal, mas completamente esquecível e esbarra na pura pretensão em diversos momentos.

O Aeroplano subiu logo após e assim como cresceu muito em disco, também fez isso no palco. O show agora é mais potente, com mais interação com o público e mais harmonia entre as faixas. Isso ficou claro em “Pra você, solidão” que foi executada durante uma pequena pane na iluminação e contou com vários celulares dos presentes iluminando o palco. Bonitaço. Músicas do excelente novo trabalho funcionaram muito como “Bazar”, “Em Defesa da Família” e a faixa título. Valeu bem.

O Meio Amargo projeto com cara folk do músico Lucas Padilha surpreendeu na sequência. Com uma banda de apoio com os pés fincados no rock, apresentou suas canções com vigor e uma roupagem que a cada passagem escancarava mais ainda o sorriso dos presentes. A melhor surpresa do festival, tranquilamente.

Os cariocas malucos e perturbados do Gangrena Gasosa vieram na sequência e promoveram o seu saravá-metal com competência, galhardia e muita porra-louquice. Uma das grandes exibições do festival. Divertida e impetuosa, assustou os mais incautos e causou muito, mas muito barulho para alegria da maioria. Showzão.

Não vi o Aldo The Band (e não me arrependo), então a sequência foi preenchida pelo Acabou La Tequila e sua mistura de rock, ska, reggae, dance e pop, com letras espirituosas. Foi bacana ver no palco Kassin, Nervoso, Renatinho e Barba, mandando versões para “Kung Fu”, “Som da Moda”, “Eu Era Pop”, “Tekila Boogaloo” e “Biscoito”. Tudo fluiu muito bem, apesar do envolvimento da banda não ser lá aquilo que se esperava em cima do palco. Mesmo assim, valeu a pena.

Depois foi a vez do Félix Robatto jogar em casa, o que por si só já trazia certa tranquilidade de uma apresentação alegre e bacana. E foi assim que ocorreu. Contou ainda com a participação da Lia Sophia nas músicas finais e se transformou em um dos melhores da noite. Altamente recomendável.

Após isso, o capixaba SILVA subia ao palco principal e a pergunta era: Que show veremos? O insosso e monótono? Ou o melódico e gracioso? Para o bem dos presentes foi a segunda opção que veio. Com a banda (mas sem o naipe de metais que lhe acompanhou no Lollapalooza desse ano) e visivelmente emocionado em alguns momentos emendou belas canções e fez um show tocante. “2012”, “Janeiro” e “12 de maio” soaram magníficas e encantadoras. Não era de se esperar tanto.

O mestre Gerson King Combo subiu na sucessão e fez um show de maior valor histórico do que necessariamente com uma qualidade alta. É daqueles shows que vale a pena ter visto por ser o artista quem é, sua importância e coisas do tipo. Mas com muitas covers no meio da apresentação é mais um baile, uma festa, do que um registo de trabalho. Funciona? Sim. Mas nada muito distante disso.

Às 3 da manhã o Vanguart aparecia para encerrar a noite no meio de gritos ensandecidos de fãs para Hélio Flanders. Vi umas 5 músicas apenas, mas desse pouco que vi dá para perceber que a banda é outra, com nova identidade e segurança e sem a maior parte da afetação de outrora. Queria ter visto mais, porém o cansaço já era dono e senhor do corpo nessa hora.


Dia 4 – 23 de agosto – Sábado - Hangar

O sábado começou no horário com a banda Simetria Oposta oriunda do interior do estado, da cidade de Capanema. Mesmo com alguma ideia boa aqui e ali, não conseguiu se sobressair. Músicos muito novos, na maioria, e que ainda buscam o caminho correto para seguir. Assim como a postura mais adequada.

Depois foi a vez do Molho Negro. Uma das bandas mais festejadas do estado atualmente (com razão, diga-se) tocou seu rock sem firulas para uma plateia ainda não tão grande, o que pouco importou para a banda que fez uma apresentação poderosíssima. Faixas do álbum novo se mesclavam com outras mais antigas e o resultado foi extremamente proveitoso. João Lemos é um rockstar carismático, raivoso e parece possuído por alguma entidade quando está em cima do palco. Se passar pela sua frente, não hesite em assistir.

O Turbo de Camilo Royale e do pequeno gigante baterista Netto veio logo após e continuou na mesma pegada do Molho Negro. O zumbido nos ouvidos continuava. Veterano da cena local, Camilo é outro que parece estar possuído em cima do palco. E isso rende momentos únicos e bastante visuais. Com músicas do mais recente trabalho a ser lançado ainda esse ano, foi outra banda a sair do palco cravando o sorriso no rosto de quem viu.

Fábio Golfetti e a versão mais recente do Violeta de Outono eram uma das apresentações mais esperadas dessa edição, pode ter certeza disso. E eles não deixaram essa expectativa em vão. Única banda a ter um bis liberado sem ser o show principal da noite, Fábio parecia duvidar um pouco da recepção calorosa do público. E mesmo com uma leve viagem mais longa na metade do espetáculo, foi coeso e emocionou em canções como “Dia Eterno”, “Declínio de Maio”, “Outono” e na clássica versão de “Tomorrow Never Knows”. O Violeta de Outono foi grande como deveria ser. E ainda contou com Pio Lobato na guitarra nas últimas músicas.

Não reuni coragem para encarar o Jaloo e com a mudança rápida na programação, o Pelv’s entrou no palco em seguida. Clássica guitar band dos anos 90, os cariocas desembarcaram em Belém com sete integrantes, o que às vezes proporcionava quatro guitarras tocando na mesma canção. Não poderia se esperar da Pelv’s pulos acrobáticos e conversas longas com o público. Não faz parte do show deles. Para eles, ensaiar e tocar é praticamente a mesma coisa. O que importa são as melodias, os backing vocais, as distorções, as microfonias. E no que tange a isso foi perfeito. Escutar coisas como “Trippy” e “Sundried And Mellowed” são capazes de valer uma noite.

O El Mató a Un Polícia Motorizado era outra daquele grupo de “bandas mais esperadas”, mas infelizmente devido a questão do acesso complicado (ainda mais porque esperei o Pelv’s até o final) vi bem de longe e só algumas faixas, então não dá para opinar muito. Os argentinos ficam para uma próxima.

Já o trio americano do Bass Drum Of Death subiu ao palco principal com duas guitarras e uma bateria. Barulho e energia dos garotos, mas nada fora isso. Parecia a mesma música sendo executada o tempo todo com pequenas variações de no máximo uns dez por cento. É legalzinho, faz balançar a cabeça, mas fica nisso. Existem centenas de bandas que fazem essa mistura melhor.

Felipe Cordeiro subia ao palco para um provável ótimo show, mas se fazia necessário um descanso para encarar o show do Arnaldo Antunes completo, que começou ali perto das três da manhã. Com uma senhora banda lhe servindo de sustentáculo (Curumin, Betão Aguiar, Chico Salem, André Lima e o guitarrista que veio no lugar do Edgard Scandurra), Arnaldo entrou com o jogo ganho. A devoção estava presente no rosto de cada um ali presente. E Arnaldo, como de costume, se doou ao máximo para esse público.

O show atual do artista baseado no álbum “Disco” de 2013 é mais dançante, mais leve, mais propenso ao swing, mesmo que em escalas tímidas na maioria das vezes (tanto é que Felipe Cordeiro aparece para “Ela é Tarja Preta”). Bem diferente da turnê do “Iê Iê Iê” que a cidade havia visto anteriormente. Arnaldo é assim, mutável. Porém, esse show atual não é tão forte quanto aquele, apesar de músicas como “Trato” e “Dizem (Quem Dera)” serem boas composições. Essa opção pelo suingue involuntário, pela guitarrinha dedilhada com habitualidade, não funciona tão bem quanto a versão mais pop ou mais rock do artista. O final com coisas como “Fora de Si”, “Vá Trabalhar”, “Envelhecer” e “O Pulso”, por exemplo, é mais possante que boa parte da apresentação. Não que tenha sido ruim, foi um bom show. Porém, só isso.

E depois de assistir 23 shows, faço duas pequenas listinhas do Festival:

Top 10 - Shows

1 - Gangrena Gasosa
2 - Violeta de Outono
3 - Nei Lisboa
4 - Molho Negro
5 - SILVA
6 - Orquestra Contemporânea de Olinda
7 – Félix Robatto
8 – Pelv's
9 - Arnaldo Antunes
10 - Meio Amargo

Top 10 - Canções

1 - “Tomorrow Never Knows” – Violeta de Outono
2 - “12 de Maio” - SILVA
3 - “Pra Você, Solidão” - Aeroplano
4 - “Sundried And Mellowed” – Pelv’s
5 - “Do Tamanho do Mundo” – Antonio Novaes
6 - “Eu Era Pop” – Acabou La Tequila
7 - “Quem Gosta de Iron Maiden Também Gosta de KLB” – Gangrena Gasosa
8 - “Baladas” – Nei Lisboa
9 - “Envelhecer” – Arnaldo Antunes
10 - “Se Ela Não é Lésbica, Tem Namorado" - Molho Negro

Que venha 2015 e os dez anos de festival.

Todas as fotos retiradas daqui: http://www.flickr.com/photos/serasgum

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quarta-feira, 13 de agosto de 2014

"O Universo Contra Alex Woods" - Gavin Extence

A vida é um processo constante de acontecimentos, escolhas e relacionamentos. Sim, resumindo de maneira bastante simplória é por aí mesmo, não tem muito como passar longe disso. Dentro desse processo que nos colocamos habitualmente em cada esquina que dobramos ou a cada frase que conversamos com alguém, moldamos o passo seguinte. Esculpir esse passo seguinte para Alex Woods nunca foi lá muito fácil, visto que logo aos dez anos de idade um meteorito atravessou o teto do banheiro e lhe acertou a cabeça. Os tais dos acontecimentos.

O inglês Gavin Extence usa esse acidente para desenvolver a narrativa do primeiro livro, batizado de “O Universo Contra Alex Woods”, que conta com edição nacional da Rocco e tradução de Santiago Nazarian nas suas 400 páginas. Publicado na Grã-Bretanha no ano passado, o trabalho recebeu boa acolhida por parte do público, o que fez com que os direitos se estendessem a outros países. Longe de ser a “nova voz” da literatura inglesa (como as propagandas adoram alardear), Gavin Extence apresenta um humor bem calibrado para acompanhar os temas definidos.

“O Universo Contra Alex Woods” é acima de tudo um livro sobre crescimento na adolescência e nesse ponto não se difere de tantos outros já feitos, porém, é bem cadenciado no início quando depois do meteorito cair na cabeça do personagem principal, ele vira uma espécie de celebridade na região (por algo tão raro), ao mesmo tempo em que lida com as consequências da casualidade que lhe deixa de herança uma epilepsia. Reclusão, falta de amigos, vida social quase zero, uma mãe protetora no caminho, o interesse quase obsessivo em questões relacionadas a ciência e ao espaço, convulsões constantes. Esse é o ambiente do jovem Alex.

Neste, digamos assim, primeiro terço do livro as coisas funcionam razoavelmente bem na narrativa que, se não é espetacular, não agride ao leitor. Ainda mais quando o protagonista conhece um senhor americano que vive sozinho em uma casa no campo e que por mais um acontecimento dessa tal de vida se transforma em uma espécie de conselheiro, uma figura paterna e confidente que ele nunca teve. Veterano de guerra e severo defensor da Anistia Internacional, este senhor é o alicerce que Alex precisa entre exposições sobre o escritor Kurt Vonnegut (de “Café-da-Manhã dos Campeões”) e considerações sobre escolhas.

No segundo terço do livro, porém, as coisas começam a desandar e o autor passa a se repetir em argumentos anteriores, ou mesmo encharcar as páginas de passagens monótonas e que não acrescentam nada quando se chega a última parte da obra. Se essa parcela insípida de “O Universo Contra Alex Woods” não fez ninguém desistir, a recompensa, por assim dizer, vem no final, onde temas mais espinhosos são abordados e percebe-se um poder maior do autor em expor raciocínios controversos na sua essência, sem deixar de lado o bom humor e o absurdo de algumas situações.

“O Universo Contra Alex Woods” é a estreia literária de Gavin Extence, e como a maioria das estreias, ainda apresenta um autor tateando, experimentando (ainda que sem muito afinco) e tentando constituir uma escrita autêntica. A composição dos personagens secundários como a mãe de Alex e a companheira de escola que vai trabalhar na loja de produtos místicos da mãe é boa, assim como a inclusão de um autor consagrado como Kurt Vonnegut na trama como desencadeador de algumas visões de mundo. Se não fossem, sei lá, umas cem páginas dispensáveis no recheio, seria um livro bem melhor, como o final prova que poderia acontecer.

Nota: 6,5

terça-feira, 5 de agosto de 2014

"Guardiões da Galáxia" - 2014

Quando a Panini começou a publicar por aqui na segunda metade da década de 2000, as partes iniciais e preparatórias para a saga “Aniquilação”, já se percebia que a Marvel estava fazendo ali algo de interessante. Depois que a saga avançou e se alastrou por outros títulos da editora, o intuito de retomar as aventuras cósmicas parecia ter sido alcançado e deixou não somente uma boa história que continua tendo suas ramificações presentes nos dias atuais, assim como fez ressurgir nomes esquecidos e acrescentou mais alguns no rol de personagens utilizados frequentemente. Foi o que aconteceu com os Guardiões da Galáxia.

Peça fundamental dessa narrativa o grupo criado no final dos anos 60 por Arnold Drake e Gene Colan, recebeu uma nova roupagem pelas mãos de Dan Abnett e Andy Lanning, sendo essa versão que o diretor James Gunn utilizou juntamente com Nicole Perlman no roteiro para criar o filme amparado no time. “Guardiões da Galáxia” é mais um produto da Marvel no cinema e representava uma aposta maior do que as outras produções, já que os personagens só eram conhecidos por leitores mais assíduos de histórias em quadrinhos e não tinham o apelo lógico de nomes como Capitão América e Vingadores, para citar alguns exemplos.

Na trama, uma criança se vê abduzida por uma nave alienígena logo após o falecimento da mãe. Peter Quill (Chris Pratt de “Ela”), que mais tarde será conhecido como Senhor das Estrelas, era essa criança e ressurge na tela já como adulto e como um caçador de tesouros intergaláctico, se preocupando somente com a adrenalina e possíveis ganhos. Em uma pequena reviravolta no desenrolar dos fatos, ele se vê ao lado de Gamora (Zoe Saldana de “Avatar”), Drax (o lutador de MMA Dave Bautista), Groot (feito com computação gráfica e voz de Vin Diesel) e Rocket Raccoon (também feito por computação gráfica e com voz de Bradley Cooper).

Esse bando desconexo e com objetivos distintos entre si acaba por criar uma improvável e torta afeição e se vê correndo contra o tempo para evitar que Ronan, o Acusador (Lee Pace de “Lincoln”) tome conta de um poder imensurável e repasse este para que Thanos (novamente Josh Brolin, assim como na cena extra de “Os Vingadores”) destrua planetas e exerça domínio sobre o universo. Nessa luta para deter os vilões, o diretor James Gunn (do razoável “Super” de 2010 e dos roteiros dos 2 primeiros longas do Scooby-Doo), apresenta uma surpreendente mistura de ação, guerra espacial, cultura pop e humor, muito humor.

Comparado aos quadrinhos (e em adaptações temos sempre que atentar para esse lado) algumas mudanças ficam bem claras. A insensibilidade de Gamora, a “mulher mais perigosa do universo”, é bem acentuada. Já Drax, o Destruidor tem o seu foco de ódio transferido de Thanos para Ronan e aparece em uma versão mais burra que a usual. Outra coisa apresentada de modo diferente é a Tropa Nova (espécie de Tropa das Lanternas Verdes da Marvel) que além de não ter os seus caracteres originais de poder também é carregada de maior humor (com direito até a John C. Reilly como um oficial barrigudo).

Essas diferenças, porém, se chegam a incomodar levemente os mais conhecedores dos personagens (principalmente no caso da “alegria” da Gamora), por outro lado estão ali para que o tom utilizado na película funcione melhor e qualquer indicação de provável demérito seria nada além de mero exercício de rabugice. “Guardiões da Galáxia” é na sua essência um filme do bem contra o mal, de como indivíduos podem descobrir nobreza dentro de si apesar das ações indicarem o inverso, e de como uma amizade pode surgir de onde menos se espera. Contudo, nada disso realmente importa. O que importa é a aventura em si, suas cenas de ação e diálogos.

Com uma trilha sonora impecável com canções dos anos 70 e 80 e que passa por coisas desconhecidas e outras como “Moonage Dream” do David Bowie, “Cherry Bomb” das Runaways e “I Want You Back” dos Jackson 5, tudo por causa de um walkman (sim, um walkman) inserido na trama que se une com referências diversas que vão desde “Star Wars” (nas cenas de batalha com as naves) até “Footloose” (com analogias a danças e o ator Kevin Bacon), “Guardiões da Galáxia” é um filme que deve ser visto seja para rir bastante ou para achar uma das dezenas de insinuações e menções do roteiro. Um filme para não ser levado a sério, no melhor dos sentidos.

P.S: Na cena escondida existe uma referência bem peculiar. Fique na sala.

P.S (mais um): Para quem quer se alongar no tema “Guardiões da Galáxia” antes do segundo filme previsto para 2017 vale correr atrás dos quadrinhos atuais, onde a equipe conta até com o Homem de Ferro no seu quadro e está sendo escrita pelo craque Brian Michael Bendis. Bem recomendável.

P.S (só mais esse, prometo): Rocket Raccoon e Groot estão hilariantes e impagáveis.

Nota: 9,0

Assista a um trailer legendado:


segunda-feira, 4 de agosto de 2014

"Planeta dos Macacos: O Confronto" - 2014

Centenas de guerras foram travadas durante os anos devido a intolerância, ao ódio irracional aliado com o medo, ou a simples questão de preservação desencadeada por esse medo. Países, povos e sociedades completas já sofreram muito por conta disso ou das suas consequências, nos ensina a história. Hoje mesmo se olharmos para os conflitos que estão em andamento no mundo, esses motivos estarão fortemente dentro do conjunto de fatores que influenciaram para que esse caminho tivesse sido tomado. Inocentes sofrem à toa, sem sentido e sem explicações plausíveis. E parece que a humanidade nunca aprende.

“Planeta dos Macacos: O Confronto” (Dawn of the Planet of the Apes, no original) tem como pano de fundo principal justamente esse tema, envolto em algumas outras nuances secundárias. Depois da surpresa positiva que foi o longa “O Planeta dos Macacos: A Origem” de 2011, dirigido por Rupert Wyatt, a expectativa sobre o novo trabalho ambientado dentro do universo do filme era bem grande. Nem a mudança de diretor alterou isso, com a entrada de Matt Reeves (de “Cloverfield – Monstro”) na chefia. E o que vemos na telona é que essa expectativa não foi gerada em vão.

O roteiro escrito por Mark Bomback (“Wolverine: Imortal”), Rick Jaffa (do filme anterior dos macacos) e Amanda Silver (também do filme anterior) é bem arquitetado, embora abuse um pouco das passagens mais sentimentalistas, que poderiam muito bem ser reduzidas dentro dos 130 minutos do filme. No enredo, encontramos César (Andy Serkis novamente envolto a muita tecnologia) alguns anos após conseguir fugir. Junto com os demais que libertou se embrenhou no meio do mato, e assim procriaram e construíram uma comunidade funcional, evoluindo ainda mais em funções diversas como a fala.

Já os humanos não se deram tão bem assim. Depois que a gripe símia criada em laboratório se espalhou pelo globo, uma parcela ínfima sobreviveu. E uma parte dessa parcela se encontra próximo de César e de seus iguais. É quando os remanescentes descobrem uma usina hidrelétrica na região em que os símios se encontram e uma pequena expedição encabeçada por Malcolm (Jason Clarke de “A Hora Mais Escura) vai atrás de reativar essa fonte de energia que daria mais chance para os seres humanos resistirem. E é quando ocorre o encontro das duas espécies tempos depois que o filme se desenvolve.

A parte visual do trabalho tem grande amplitude no resultado final. A direção de arte conta com profissionais como Naaman Marshall (de “Batman: O Cavaleiro das Trevas Ressurge”) e os efeitos visuais com Gerardo Aguilera (“O Hobbit” e “Jogos Vorazes: Em Chamas”), entre outros. Com isso, as cenas de batalha e de apresentação dos personagens é muito eficiente, como também as explosões e a utilização da mata dentro desse contexto. O roteiro amarra bem a história com o longa anterior (James Franco aparece em uma imagem gravada) e assim justifica algumas deliberações realizadas.

O filme atual se situa historicamente antes dos eventos da pífia refilmagem de “O Planeta dos Macacos” de 2001 (logo, como também do original de 1968) e dez anos depois do anteriormente já citado filme de 2011 (esqueça os quatro filmes dos anos 70). No mundo das referências, duas coisas merecem menção. Primeiro, quando Alexander (Kodi Smit-McPhee) entrega um livro para Maurice (Karin Konoval). Trata-se da ótima história em quadrinhos “Black Hole” de Charles Burns, que tem muito a ver com uma das ideias exploradas na trama. E a segunda é a inserção certeira da formidável “The Weight” da The Band na trilha sonora em um momento especial.

“Planeta dos Macacos: O Confronto” aborda questões atemporais que continuam vivas dentro dos nossos dias, infelizmente. Mesmo com leves deslizes e um pouco extenso demais, o roteiro abrange bem aquilo a que se propõe equilibrando ação e drama de modo satisfatório. Uma das grandes virtudes é não impor ao telespectador heróis ou vilões, deixando solto a ambiguidade dos personagens. Mesmo aqueles com melhor coração podem ter pensamentos controversos com a sobrevivência em jogo e isso é um mérito importante do filme. Um filme que diverte, mas que também traz um pouco de reflexão a superfície.

Nota: 8,0

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terça-feira, 29 de julho de 2014

“Man On The Run - Paul McCartney nos Anos 1970” - Tom Doyle

 
Você fez parte da maior banda que o mundo já viu até então. Alcançou um sucesso nunca visto antes no mundo da música. Virou do avesso todas as concepções de entretenimento e marketing cultural. Cativou um público imenso e fez discos aclamados por esse público, como também pela crítica. Ganhou muito dinheiro. No entanto, tudo isso acabou. Tudo isso chegou ao fim. Por vários motivos como convivência, falta de tesão, egos enormes, influência de terceiros, disputas internas. Na verdade, não importam muito os motivos, o que importa é que as coisas terminaram. E agora? O que fazer?

Foi nessa situação que Ringo Starr, George Harrison, John Lennon e Paul McCartney se encontravam no começo dos anos 70 com o fim dos Beatles. Mesmo que o fim da banda fosse inevitável de várias maneiras, ficou esse sentimento do que fazer depois de tudo. O conceituado jornalista inglês Tom Doyle (Q Magazine, The Guardian, Mojo) apresenta o desenrolar dessa história pelos anos 70 para um dos envolvidos no livro “Man On The Run – Paul McCartney nos Anos 1970”, que a Editora Leya lançou por aqui no primeiro semestre desse ano com 336 páginas e tradução de Paulo Polzonoff.

Publicado no exterior no ano passado, o livro tem partida ainda no final dos Beatles e se estende até os primeiros passos dos anos 80, sendo que esse final chega precedido da prisão de Paul no Japão por posse de maconha e do assassinato de John Lennon em dezembro de 1980. Esses pontos, aliás, são muito bem explorados no registro. A questão da maconha e a paixão do músico e seus cúmplices por ela, como também o conturbado e abstruso relacionamento com o parceiro e amigo dos tempos de Beatles que trafegava entre a rispidez pública e o carinho privado externado em conversas telefônicas e reuniões de casais.

“Man On The Run – Paul McCartney nos Anos 1970” apresenta ao leitor uma pessoa talentosa e ainda jovem que, em tese, teria o mundo nas mãos mas vê isso acabar (com uma boa carga de culpa, diga-se) e fica sem rumo, sem objetivos. A separação até pelos fatos que a sucederam com declarações ácidas dos envolvidos e brigas judiciais pela finitude também da sociedade do grupo afetaram profundamente Paul McCartney que se não fosse o suporte da mulher, como ele próprio admite várias vezes, teria sido inimaginável sair disso como saiu. Linda, sua primeira esposa, além de companheira foi a alavanca que novamente o impulsionou adiante.

O livro percorre um caminho cheio de dúvidas, afirmações, questionamentos e inseguranças, mas também de aprendizado, crescimento, admissão de falhas, excentricidades e sorrisos. Com o final dos Beatles, Paul e Linda passam a viver como hippies praticamente em uma fazenda escocesa. Depois dos álbuns “McCartney” de 1970 e “Ram” de 1971, o intuito do artista era ter novamente um grupo e assim nasceu o Wings que contava na primeira formação com sua esposa Linda nos teclados (motivo de várias broncas), Denny Laine (ex-Moody Blues) na guitarra, Denny Seiwell na bateria e Henry McCullough na outra guitarra.

Dentre as inúmeras formações que o grupo teve até também sucumbir no início dos anos 80, essa provavelmente foi a melhor, trabalhando nos primeiros discos “Wild Life” de 1971 e “Red Rose Speedway” de 1973, onde McCartney ainda reaprendia o ofício da composição, por assim dizer, assim como no magistral “Band Of The Run” de 1973, que novamente alçou seu nome a condição de antes e convenceu os críticos de que ele ainda tinha muita lenha para queimar, fato comprovado pelo álbum seguinte, “Venus And Mars” de 1975 e composições como “Live And Let Die” feita para o filme “007 - Viva e Deixe Morrer” de 1973.

Um dos aspectos mais eficientes de “Man On The Run – Paul McCartney nos Anos 1970” é que Tom Doyle faz um trabalho jornalístico exemplar não se eximindo de tratar de questões espinhosas e sem mitificar mais ainda o mito. Pelo contrário, expõe fraquezas diversas como a relação do artista em relação ao dinheiro, a imposição de suas ideias perante os demais, as excentricidades pouco comentadas e a relação com drogas dentro do seu nicho de convívio. Uma elogiada posição perante tantas biografias insípidas e sem graça que só servem para louvar o biografado. Fica claro que Tom Doyle admira o trabalho de McCartney, mas isso não o impede de cutucar algumas feridas, o que só aumenta o valor do trabalho.

P.S: Além de histórias saborosas (e dolorosas), Tom Doyle ainda adiciona no final uma detalhada discografia e apresentações do período.

Nota: 8,5

A Editora Leya disponibilizou um trecho para leitura aqui:

Na foto abaixo, o Wings faz pose na primeira turnê: