quinta-feira, 24 de novembro de 2016

Literatura: "Neuromancer" e "Deuses Americanos"


Ao chegar às livrarias em 1983, “Neuromancer” desembarcava em outro mundo, bem outro. Se a tecnologia atual não alcançou tudo que fora previsto em obras de ficção científica nesses mais de 30 anos, a intensidade que essa tecnologia exerce hoje em cima da sociedade e as facilidades que dispões são poderosas. William Gibson é uma espécie de pai do que se chamou de cyberpunk e o ápice maior disso é “Neuromancer”, livro inicial da chamada Trilogia de Sprawl que ainda tem “Count Zero” e “Mona Lisa Overdrive”. A obra que (merecidamente) ganhou fama e hoje é respeitada e citada como influência nas mais diversas mídias é uma aventura de ficção científica que explora temas como pós-humanidade, poder demasiado de corporações empresariais, fusão entre orgânico e sintético, bestificação do consumo, tecnologia como arma e imersão virtual. Pode-se dizer que sem ela, obras como “Matrix” dos irmãos Wachowski jamais teria existido. Para quem se depara com a história somente agora, ainda assim, o impacto é grande. Tanto pela linguagem criada, quanto pela interligação com coisas exploradas somente anos depois, “Neuromancer” é um livro feroz, que não deixa o leitor baixar a guarda por nenhum momento que seja e o faz entrar em uma espiral caótica de real e artificial que parece não ter fim. A editora Aleph publica esse ano uma nova edição do livro, com tratamento cuidadoso em 320 páginas e tradução de Fábio Fernandes. Aliás, traduzir algo como essa obra é um trabalho extremamente complexo para que se faça funcionar, o que aqui se consegue. O protagonista é Case, um jovem cowboy hacker doidão que vive em uma cidade tão louca quanto ele. Ao ser convidado (ou intimado) a fazer parte de uma missão que só se revela gradualmente acaba entrando em algo infinitamente maior do que imaginava e essa jornada não será nada fácil. Ainda que hoje algumas coisas pareçam datadas, a viagem concebida por William Gibson ainda merece e muito ser desfrutada. Embarque nela.

Nota: 8,0

Site oficial do autor: http://www.williamgibsonbooks.com 


Quando Neil Gaiman imaginou “Deuses Americanos” não sabia muito bem o que estava fazendo. Tinha o esboço da ideia geral na mente, contudo possuía várias ressalvas de como abordar uma história que tivesse tanto vínculo com os EUA e que usa o país como matéria-prima, sendo ele um inglês de Hampshire. Mas não é a toa que o escritor é um dos grandes da sua geração e a trama foi tomando forma e chegou muito além do que ele mesmo esperava. Quando da publicação original em 2001, “American Gods” teve muitas passagens cortadas pelos editores, mas depois de alguns anos uma “edição preferida do autor” chegou às lojas. É essa edição que a Intrínseca (que vem fazendo um trabalho de destaque nas obras do escritor) publica agora no Brasil com 576 páginas, tradução de Leonardo Alves e vários textos extras anexados. Em “Deuses Americanos” conhecemos Shadow, um presidiário que está prestes a ganhar liberdade e voltar para os braços da esposa amada, depois de uma decisão ruim ter atravessado o caminho. Quando está próximo a obter essa conquista, uma reviravolta tremenda ocorre e após isso o misterioso Wednesday aparece para mudar sua vida como ele nunca passou nem perto de imaginar. Essa nova edição da Intrínseca tem 128 páginas a mais que aquela lançada pela Conrad em 2011 e isso faz com a trama seja mais profunda, dando espaço para que Gaiman explore ainda mais as situações que apresenta. No livro, versa sobre a formação da maior potência do mundo e sua relação com aqueles responsáveis por isso que para lá migraram levando as crenças e deuses escondidos na sacola. Mesmo depois de 15 anos do lançamento a obra continua intensa, desnudando divindades, inserindo novas e transformando humanos enquanto mescla realidade e fantasia ao conversar sobre crenças, alma, ambição, desejo e traição.

Nota: 9,0

Leia um trecho no site da editora, aqui.

sexta-feira, 18 de novembro de 2016

Quadrinhos: "Drop Dead" e "A Gigantesca Barba do Mal"


Perder alguém da família passa longe de ser uma coisa fácil de assimilar. Perder um pai ou uma mãe então é dureza demais. É isso que acontece com William, protagonista de “Drop Dead”, novo projeto em quadrinhos do paulista Aluísio C. Santos (Rockstar, Grim Leaper), uma das quatro cabeças criadoras do selo Quad Comics junto com Diego Sanches, Eduardo Ferigato e Eduardo Schaal. O álbum que tem 82 páginas foi aprovado pelo Programa de Ação Cultural do Estado de São Paulo (ProAC) ano passado e chega às bancas e revistas especializadas do ramo agora em 2016. Enquanto busca entender o acontecido, o jovem William alivia a pressão escutando música e andando de skate pela cidade, uma das suas paixões. Porém, do nada, ele começa a enxergar pessoas falecidas na sua frente e interagindo com ele. Enquanto se esforça para não pirar tem que lidar com a mãe nessa nova dinâmica de vida familiar e correr atrás de explicações. “Drop Dead” insere uma temática mais distante dos trabalhos publicados pela Quad Comics, mesmo que flerte diretamente com o sobrenatural. Tem bom uso de cores e arte harmonizada com a história que se pretende contar, mas não deslumbra e fica apenas no correto, assim como o roteiro que caminha sem chegar a lugar nenhum, o que acaba por ser o grande problema da obra. Da interessante concepção de apresentar um jovem abatido por uma perda de tamanho imensurável e, além disso, ter que descobrir como se posicionar perante relações delicadas e fora do comum, temos uma história que não prende o leitor plenamente. Aluísio C. Santos insere boas situações, sendo uma delas a playlist no Spotify que serve como trilha sonora e tem canções do Offspring, Nirvana, Suicidal Tendencies e Faith No More, mas fica apenas nisso, em um tratado de boas ideias, que infelizmente não atinge um resultado melhor.

Nota: 5,0

Site da Quad Comics: http://www.quadcomics.com.br 



O sentimento de rechaçar tudo aquilo que não se entende, tudo aquilo que não faz parte do que se exibe como “normal” acompanha a humanidade desde o início dos tempos. Nos últimos anos vemos toda essa intolerância e discriminação chegando a patamares elevados e se alastrando como uma peste pelo mundo. Esse é o principal foco de “A Gigantesca Barba do Mal” (The Gigantic Beard That Was Evil, no original), graphic novel de 2013 que há pouco ganhou publicação nacional pela editora Nemo, com 240 páginas e tradução de Eduardo Soares. Primeiro trabalho extenso do ilustrador e cartunista britânico Stephen Collins, o álbum é uma fábula moderna que usa a sátira e o humor como combustível para nos contar uma história cada vez mais atual. Dave é o personagem principal, habitante de uma ilha chamada Aqui onde tudo anda extremamente igual todo dia. Tudo é organizado, limpo e rotineiro. Mesmo sem entender o seu trabalho (e os demais também não) segue satisfeito por apresentar resultados em reuniões monótonas, ter um lar e poder desenhar a rua da sua casa enquanto escuta “Eternal Flame” das Bangles. Tudo fora de Aqui é conhecido pelos moradores como Lá, e esse Lá enche de medo a todos, o medo do desconhecido, do diferente, e a rejeição que brota disso. Esse receio todo se agrava ainda mais quando a barba de Dave não para de crescer e transtorna a todos. Vizinhos, governo, imprensa, todos começam a lhe tratar diferente, como um pária, um mal a ser erradicado. Ele mesmo se desespera, porque a barba cresce do nada, sem que ele queira ou tenha controle sobre isso. Em preto e branco e com foco nos enquadramentos, Stephen Collins é responsável por um dos trabalhos mais interessantes publicados esse ano aqui no Brasil.

Nota: 9,0


Leia um trecho no site da editora: http://grupoautentica.com.br/nemo/amostra/1401 


sábado, 12 de novembro de 2016

Música: Green Day e Descendents


Depois do insucesso do projeto triplo que envolveu os discos ¡Uno!, ¡Dos! e ¡Tré! lançados entre setembro e dezembro de 2012, Billie Joe Armstrong, Tré Cool e Mike Dirnt retornam em 2016 com “Revolution Radio”. Novamente distribuído pela Reprise Records, o trio deixou o velho amigo e produto Rob Cavallo e fez tudo sozinho no disco. O resultado é um álbum cru, sem grandes invencionices, que aponta para os primeiros registros sem esquecer coisas posteriores como o “American Idiot” de 2004, o que é normal para uma banda com os anos de vida que o Green Day ostenta. A banda nunca foi de deixar problemas atuais ficarem longe das músicas e isso novamente aparece como na enérgica faixa-título e em “Troubled Times” (e vem se alongando ao vivo devido ao momento ainda mais crítico do país). Os 44 minutos de “Revolution Radio” não exibem nenhuma canção estupenda e as que ficam mais próximas disso são o primeiro single “Bang Bang”, com as paradas características do grupo, e a pra cima “Youngblood”, mas pode ser entendido como um disco de transição, com o trio novamente tomando as rédeas da carreira, saindo em turnê, sentido em prazer em tocar. O grande problema do Green Day e isso vêm desde o já citado “American Idiot” de 2004 é querer se alinhar entre o punk e o rock mais de arena, o que gerou bons trabalhos, mas tudo indica ter chegado a um limite de saturação. Isso fica claro em faixas como “Somewhere Now”, “Outlaws” e “Still Breathing”. Já que a banda pensou nesse “Revolution Radio” como uma retomada de origens (e é isso mesmo algumas vezes), seria interessante no futuro retomar com tudo para esse caminho, pois aparenta ainda ter fôlego para tanto, basta só deixar de vez de lado as pretensões construídas em outro momento da carreira. A conferir.

Nota: 6,0

Site oficial: http://www.greenday.com  


Banda essencial do punk rock e influência para diversos grupos, os californianos do Descendents voltaram em 2016 com um novo registro chamado “Hypercaffium Spazzinate”. A banda que não gravava nada desde 2004 com o bom “Cool To Be You” retorna com um álbum que rememora seus melhores momentos. Lançado pela gravadora Epitaph apresenta 16 músicas na versão principal e mais 5 em uma versão deluxe que ao invés de ser apenas uma encheção de linguiça traz canções do mesmo nível do disco como “Days of Desperation”, “Business A.U” e “Unchaged”. Formado no final dos anos 70 e com discos na bagagem do porte de “I Don’t Want to Grow Up” (1985) e “Everything Sucks (1996)” (sem contar a seminal estreia com “Miles Goes to College” de 1982), o grupo já cinquentão exibe uma obra com a mesma pegada que fez tantos e tantos fãs. As faixas são elaboradas por todos os integrantes, a saber: Stephen Egerton (guitarra), Milo Aukerman (vocal), Karl Alvarez (baixo) e Bill Stevenson (bateria), e apresentam as temáticas cotidianas e bem humoradas já conhecidas de outrora, com algumas mais sérias como “Feel This” que fala sobre perda. Apesar de tanto tempo de estrada “Hypercaffium Spazzinate” é apenas o sétimo registro de estúdio, o que mostra que fazer música sempre foi coisa importante para todos os integrantes, sem lançamentos banais pelo meio. Com faixas como “Victim Of Me”, “Shameless Halo”, “Comeback Kid”, “Beyond The Music” e principalmente a chicletuda “Without Love”, o Descendents compôs um dos grandes discos desse ano e deixa mais ansiedade ainda no ar para a apresentação que faz em solo brasileiro no início de dezembro e que já pode ser chamada de imperdível para os amantes do punk. Escute alto.

Nota: 8,5


Assista a apresentações ao vivo abaixo. O Green Day com "Bang Bang" e o Descendents com “Shameless Halo”:


sexta-feira, 4 de novembro de 2016

Literatura: “1965: o ano mais revolucionário da música” e "Cidade dos Etéreos"


É comum achar que tal ano ou tal década foi mais importante para a música ou para um determinado estilo. O escritor, crítico e diretor de cinema Andrew Grant Jackson também tem uma opinião em relação a isso e apoiado em uma extensa pesquisa que alcançou diversas fontes colocou o resultado disso no livro “1965: o ano mais revolucionário da música” que a editora Leya lança esse ano aqui. Originalmente publicado em 2015 nos EUA, “1965 – The most revolutionary year in music” tem tradução nacional de Edmundo Barreiros e 384 páginas incluindo notas, bibliografia e índices. O livro extrai da década de 60 esse mítico ano onde entre outras coisas os Beatles lançaram o disco “Rubber Soul”, os Rolling Stones cravaram “(I Can´t Get No) Satisfaction” nas paradas e nas mentes, o The Who apareceu com o hino “My Generation” e Bob Dylan cunhou a soberba “Like a Rolling Stone” e assombrou convenções inserindo a guitarra elétrica nos seus shows. Some-se a isso criação de várias outras pérolas do soul, do pop e do folk e passos importantes para artistas como Beach Boys, Velvet Underground, The Byrds, John Coltrane, James Brown, Sam Cooke, Them, Jefferson Airplane e Simon & Garfunkel, entre tantos outros. O autor consegue com relativo sucesso conectar esses atos a situação geral daqueles anos, conjecturando um pouco sobre o cenário político, econômico e social levando em conta tanto as revoluções em andamento, quanto a luta pela conquista dos direitos civis nos EUA e a guerra do Vietnã. A obra expõe um trabalho jornalístico cuidadoso e serve como bom instrumento de consulta para a época seja nos casos já amplamente conhecidos ou em algumas surpresas que o texto reserva. Todavia, falha quando o autor tenta guiar os fatos para dentro da sua lógica pessoal de mundo e isso acaba por diminuir o resultado final.

Nota: 6,5 


No primeiro semestre desse ano a editora Intrínseca deu continuidade a trilogia de Ransom Riggs chamada “O Orfanato da Srta. Peregrine Para Crianças Peculiares” e lançou o segundo livro (o primeiro teve lançamento da editora Leya no ano passado) da pequena saga. O bom primeiro livro rendeu também um bom filme esse ano nas mãos do diretor Tim Burton e com Eva Green, Asa Butterfield e Samuel L. Jackson no elenco. O livro II lançado originalmente em 2014 tem capa dura na edição nacional, tradução de Fernando Carvalho e 386 páginas, incluindo um pequeno trecho do terceiro trabalho no final. “Cidade dos Etéreos” (Hollow City, no original) tem início exatamente no ponto onde o exemplar anterior terminou com Jacob Portman, Emma Bloom e os demais integrantes da trupe de crianças especiais em fuga depois da destruição da ilha onde moravam. Com destino a Londres e tendo por objetivo salvar sua querida tutora e professora da atual condição que se encontra (mesmo sem saber como), o intrépido grupo vai se deparar com aventuras intensas e desconhecidas pela frente. Utilizando um pouco de história como pano de fundo, Ransom Riggs cria mais uma dezena de singulares personagens que apoia em outras fotografias antigas que espalha pelo texto. Mantêm o mesmo modo de operação do primeiro livro, mas enxerta pontos que dão mais vigor ao texto como viagens no tempo e o romance mais vívido entre o casal de protagonistas. Com isso, Jacob Portman sai da insegurança de antes para se tornar um jovem obstinado que tenta a todo custo superar as dúvidas que lhe aparecem e achar o próprio caminho. “Cidade dos Etéreos” chega com um trabalho editorial luxuoso da Intrínseca e está no mesmo nível que seu antecessor, deixando uma boa expectativa para a conclusão e se consolidando como uma das narrativas mais interessantes voltadas para o público jovem atualmente.

Nota: 8,0