terça-feira, 7 de abril de 2015

" A Hora dos Ruminantes" - José J. Veiga

É um dia como qualquer outro. Os afazeres são feitos calmamente com dedicação e parcimônia. Tudo parece igual como sempre foi em uma pacata vila interiorana dos anos 60. Ao longe ouvem-se cantos de pássaros e ruídos de animais. Até que ao acordar no dia seguinte os habitantes enxergam um acampamento cheio e organizado no outro lado do rio, conectado por uma pequena ponte. De súbito, a rotina vai para o espaço, pois a curiosidade toma conta de todos que procuram saber quem se aventura por terras tão remotas e quais são seus objetivos.

“A Hora dos Ruminantes”, livro escrito pelo goiano radicado no Rio de Janeiro José J. Veiga e publicado pela primeira vez em 1966 tem como ponto de partida o descrito no parágrafo anterior. É o segundo livro do autor e sucede “Os Cavalinhos de Platipanto” de 1959 com seus 12 contos que fazem intersecção entre sonho e realidade. Os dois livros estão sendo republicados esse ano pela Companhia das Letras em comemoração ao centenário de nascimento do autor (que faleceu em 1999) e os demais trabalhos concebidos por ele também estão programados para sair.

Essa nova edição de “A Hora dos Ruminantes” ganha um bocado de capricho com direito a prefácio detalhado, índice de obras relacionadas e capa dura. Com 152 páginas demonstra ao novo leitor o realismo fantástico de José J. Veiga que ganha paralelo na obra de autores sul-americanos como Gabriel Garcia Márquez, Julio Cortázar, Arturo Uslar Pietri e Murilo Rubião. É um texto onde as alegorias e metáforas tomam conta do cenário, mas sem deixar de lado a parte coloquial da fala dos habitantes e, por conseguinte, a montagem de um retrato do interior do Brasil.

O livro é dividido em três partes: “A Chegada”, “O Dia dos Cachorros” e “O Dia dos Bois”. Na primeira, como já retratado acima, a vila de Manarairema se depara com estranhos que chegam do nada e não se apresentam nem para conversar. O estranhamento inicial faz contrapartida com o medo que o ser humano tem da mudança, da alteração da rotina, do novo. Mas ainda mais fundo está a analogia e a relação com a ditadura militar em voga no país na época, podendo partir do pressuposto que os novos moradores do local são “gente do governo”, como diz o texto.

Com o medo se espalhando entre os simples moradores que passam a sofrer pequenas, mas frequentes coerções, a vila de Manarairema sofre drásticos ajustes. Isso só piora quando cães tomam de assalto o local obrigando todos a ficarem ressabiados e com pânico do que poderá vir, ou depois quando são bois que adentram esse espaço e não permitem nem que se saia de casa, precisando ser inventando todo um novo meio de comunicação para que a cidade sobreviva em meio a esses acontecimentos estranhos e tão sem sentido para o povo da vila.

No meio dos diálogos José J. Veiga insere bom humor ao lado do espanto, com a inserção de diversos ditados populares, mas também é no meio desses diálogos que amplifica as imagens alegóricas que fazem menção a verdadeira invasão que tomou conta do país naqueles tempos. Por outro lado, “A Hora dos Ruminantes” é um livro tão bem construído que funciona até se o leitor relevar isso e considerar as situações somente pelo viés da estranheza e da opressão que os habitantes de Manarairema se encontram adicionados. São essas possibilidades que constroem o maior mérito da obra.

Nota: 9,0

A Companhia das Letras disponibiliza gratuitamente um trecho para leitura, aqui.

Assista um vídeo com Antonio Arnoni Prado (responsável pelo prefácio do livro) falando mais sobre a obra do autor:


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