quarta-feira, 29 de maio de 2013

"Garota Exemplar" - Gillian Flynn

O poeta e escritor escocês Robert Louis Stevenson classificava o casamento como uma longa conversa entremeada com disputas. Se na verdade é isso ou não, o livro “Garota Exemplar” deixa mais um atestado no caminho dessa afirmação. É o primeiro trabalho da jornalista e escritora Gillian Flynn a ser publicado aqui no Brasil (os inéditos são “Sharp Objects” e “Dark Places”), depois de passar por mais de 20 países e ter alguns milhões de exemplares vendidos. A Editora Intrínseca é a responsável pelo lançamento tupiniquim, que conta com tradução de Alexandre Martins e 450 páginas.

Em “Garota Exemplar” o leitor é convidado a entrar na vida do casal Amy e Nick Dunne. Ela é uma mulher de metrópole, criada em Nova York, com pais que fizeram fortuna com uma série de livros infantis e juvenis baseados na própria filha, onde a protagonista exala todo e qualquer tipo de perfeição que possa existir. Já ele, é um crítico cultural, com gostos meio simplórios e comuns, que acabou perdendo o emprego na revista em que trabalhava devido a transposição do mercado para a internet e a consequente reforma que isso iniciou na segunda metade da década passada.

Por um desses encontros e desencontros da vida os dois se interessaram um pelo outro, preenchendo (pelo menos momentaneamente) algumas lacunas necessárias e se casam. No ponto em que o livro começa estamos no dia do aniversário de cinco anos de matrimônio e as coisas já não andam lá tão bem. A fortuna de Amy foi se esvaindo aos poucos, Nick continuou desempregado e por uma questão que aliou problemas familiares e necessidade pessoal, o casal mora agora em uma casa situada nas margens do Rio Mississippi, longe de tudo aquilo com que se acostumaram.

Gillian Flynn alterna os capítulos individualmente de cada lado e entrecorta presente e passado na primeira parte do livro. Essa construção é necessária para que o leitor entre em uma zona de conforto e ache que já é senhor da trama, para que mais lá na frente sinta o baque e seja convocado a se levantar e deixar essas primeiras impressões de lado. Assim, os dois personagens são bem construídos, expondo suas imperfeições e defeitos, sendo que nesse momento é bem mais fácil se agradar com Amy do que propriamente com o lado masculino do par.

Uma das grandes vantagens de “Garota Exemplar” é deixar seus personagens com um lado ambíguo e duvidoso, optando em navegar em áreas cinzas ao invés do tradicional preto ou branco. Ambos têm coisas para se odiar. Quando Amy simplesmente desaparece na manhã do aniversário de casamento já citado e a procura da polícia começa a apontar para o envolvimento de Nick (deixando de lado a opção de sequestro), é que isso aparece mais, com tons mais traiçoeiros e capciosos onde as demais pessoas envolvidas no caso (família, amigos e público em geral) partilham entre si também dessa faceta dúbia e se entregam facilmente aos seus interesses pessoais.

Mesmo com a tarja estampada de “milhões de cópias vendidas”, que pode assustar o leitor mais exigente por se imaginar o enquadramento como uma literatura banal, “Garota Exemplar” esquiva-se dessa provável regra e é uma boa e surpreendente exceção. Um livro não remete linhas muito lisonjeiras para a instituição casamento e assim passa perto de afirmações como a do ex-presidente norte-americano Abraham Lincoln que definia o casamento como “nem o paraíso e nem o inferno, apenas o purgatório”.

Nota: 7,5

Site oficial da autora: http://gillian-flynn.com


A Editora Intrínseca disponibiliza um trecho gratuitamente para leitura, aqui.

quarta-feira, 22 de maio de 2013

"Demolidor Noir" - Alexander Irvine, Tomm Coker e Daniel Freedman

Em 2009 a Marvel resolveu criar uma nova linha de quadrinhos baseada nos seus personagens clássicos. A ideia primordial era ambientar essas histórias nos anos 30 e caracterizar estas com um aspecto noir e inspiradas na literatura pulp da época. O noir que como literatura e, principalmente cinema, rendeu ótimos frutos, invadiria assim os quadrinhos com suas tramas policiais com detetives, assassinatos, cores negras, homens dúbios e mulheres provocantes e não confiáveis. A ideia foi dando certo e a Marvel estendeu essa linha para uma gama bem ampla do catálogo.

A Panini Comics começou a publicar esses produtos por aqui e o resultado é sempre mais ou menos satisfatório, apesar de não convencer exatamente pelo brilho do personagem principal e sim por algum outro atrativo, caso dos aspectos sociais e econômicos expostos em Homem-Aranha ou do ritmo de aventura visto em Homem de Ferro. Porém, era meio claro que quem teria mais condições de se adequar a esse estilo era o Demolidor. Era só não estragar tudo como fizeram no horrível filme de 2003.

“Demolidor Noir” foi publicada em terras brazucas agora em 2013 e apresenta as quatro edições lançadas lá fora entre junho e setembro de 2009 em um arco fechado. Com roteiro do escritor Alexander Irvine, arte de Tomm Coker e cores de Daniel Freedman, o homem sem medo é transportado para o período da lei seca, mas continua na Cozinha do Inferno. Lá, ele não é mais um advogado, mas um ajudante do amigo Foggy Nelson, travestido aqui nesta versão em um investigador particular.

O Matt Murdock de “Demolidor Noir” é um homem mais atormentado que de costume, e assim, diferente das outras publicações dessa linha editorial, assume o posto de destaque. Sem encontrar seu lugar, vive sofrendo com dúvidas, inquietações e um sentimento de raiva pela morte do pai que lhe move adiante contra o crime. Seus instintos aumentados são um benefício sem dúvida, mas também uma dor constante, que lhe tiram o sossego e aplicam no seu ego uma confortável e perigosa dose de arrogância.

É essa arrogância que o atira dentro de um caso junto com o rei do crime Wilson Fisk, um novo gângster que tenta lhe roubar o trono e, evidente, uma bela mulher, tão comum nas histórias do Demolidor e do próprio gênero noir. Quando atualmente o personagem passa por mais uma das suas inúmeras (e interessantes) reconstruções pessoais, esse olhar diferente com cores escuras e densas serve para reafirmar o potencial e carisma do Demolidor, mesmo que sempre renegado a mero coadjuvante pela Casa das Ideias.

P.S: Só o uniforme que não ficou lá essas coisas. Perdoável.

Nota: 8,5

Mais sobre os autores Alexander Irvine, Tomm Coker e Daniel Freedman você encontra aqui (http://alexirvine.blogspot.com.br) e aqui (http://www.corvxstudios.com).

terça-feira, 21 de maio de 2013

“Baby’s in Black, o Quinto Beatle: A História de Astrid Kirchherr e Stuart Sutcliffe” - Arne Bellsdorf

 
Uma bonita e triste história de amor. Com enredo inicial que remete a tantos e tantos casos no decorrer dos tempos. Rapaz conhece uma garota, que conhece o rapaz e assim se desencadeia uma atração que torna praticamente impossível não tocar a vida juntos naquele momento. Piegas? Sim, como deve ser o amor. Principalmente na juventude, antes do cinismo e da proteção pessoal se estender como um manto invisível que proíbe novas incursões no futuro. Foi assim a história de Astrid Kirchherr e Stuart Sutcliffe.

Para entender um pouco mais é preciso voltar bem no tempo. Voltar para 1960 quando John Lennon, Paul McCartney, George Harrison, Pete Best e Stuart Sutcliffe desembarcaram na cidade de Hamburgo para levar adiante o sonho de ter uma banda de rock. Ali, no princípio da história da maior banda de todos os tempos, houve também um conto de amor e paixão. Em meio aos bares, prostituas e bebidas, os Beatles tinham uma tremenda prova de fogo e viam o primeiro dos seus integrantes a abandonar o barco.

Stuart não queria ser músico, mas como tinha dentro de si uma efervescência pelo novo, pelo diferente, resolveu deixar a escola de arte e aceitar o convite do amigo John e começar a tocar baixo, mesmo sem saber nota alguma. Quando a banda chega à cidade de Hamburgo, ainda sem Ringo Starr na bateria e com ele no baixo, eis que atravessa no seu caminho a bela fotógrafa Astrid Kirchherr, que aos 22 anos cruzava a Alemanha do pós-guerra exibindo independência e alguns sonhos dentro do jovem coração.

Dentro do sujo bar Kaiserkeller, os dois tem o primeiro contato e a partir disso fica difícil não estar perto um do outro. Com ajuda do amigo Klaus Voormann (que entre outras coisas fez a capa do álbum “Revolver” dos Beatles e tocou baixo em discos de John Lennon e Lou Reed), Astrid passa a se comunicar com o mundo de Stuart no intervalo das apresentações da banda, onde clássicos dos anos 50 como “Roll Over Bethoven” e “Money” são executados dia após dia por aqueles que um dia dominariam a música mundial.

Tudo isso está na boa graphic novel “Baby’s in Black, o Quinto Beatle: A História de Astrid Kirchherr e Stuart Sutcliffe”, escrita e desenhada pelo alemão Arne Bellstorf, que originalmente foi lançada no seu país em 2010. A HQ chegou ao Brasil no final do ano passado pela 8Inverso Graphics com 208 páginas e tradução da dupla Augusto Machado Paim e Cássio Pantaleoni e tem a relação de amor do subtítulo como mote principal da trama, se dando ao luxo de deixar os Beatles como meros coadjuvantes.

Um filme muito interessante sobre essa época pré-Beatles é “Backbeat – Os 5 Rapazes de Liverpool”, registro de 1994 do diretor Iain Softley que conta com uma trilha sonora impecável e arrebatadora (mais aqui: http://www.imdb.com/title/tt0106339). Nele pode-se entrar um pouco mais no universo de Stuart Sutcliffe, que mesmo falecendo em 10 de abril de 1962 por causas até hoje não identificadas totalmente, continua tendo a sua história servindo de inspiração nos nossos dias.

Nota: 7,0

Veja um trecho diretamente do site da editora, aqui.

Site do autor: http://www.bellstorf.com

Textos relacionados no blog:

- Quadrinhos: “O Pequeno Livro dos Beatles” – Hervé Bourhis
- Cinema: “O Garoto de Liverpool” (2010)
- Quadrinhos: “Johnny Cash – Uma Biografia” – Reinhard Kleist

segunda-feira, 20 de maio de 2013

"O Que Aconteceu Ao Homem Mais Rápido do Mundo?" - Dave West e Marleen Lowe

Herói é uma figura que reúne em si os atributos necessários para superar de forma excepcional um determinado problema de dimensão épica. Essa é uma das diversas definições que encontramos sobre a palavra “Herói” nos dicionários de plantão. Quando lemos a graphic novel “O Que Aconteceu Ao Homem Mais Rápido do Mundo?” de Dave West e Marleen Lowe, somos apresentados a uma pessoa comum que pode ser enquadrada nesse significado, mesmo que sua maneira de resolver a questão não seja exatamente espetacular.

O álbum foi lançado na Inglaterra pela Accent UK (onde o autor é fundador) e ganhou publicação nacional pelas mãos da competente Gal Editora em 2010. Com 64 páginas e tradução conjunta de Eliane Galucci e Maurício Muniz, é daquelas histórias que você lamenta ter conhecido tardiamente. O roteiro de Dave West apresenta Bobby Doyle, um sujeito que está devidamente habituado a ser um cidadão médio, com desejos simples como ter uma vida tranquila, casar com uma mulher bacana, ter dois filhos e assim por diante.

Acontece que Bobby Doyle não é um sujeito qualquer. O destino (ou seja lá o que for), lhe deu o poder de parar o tempo a sua volta. Ele na verdade nunca se interessou muito em saber o porquê disso e nem contou a ninguém sobre tal dom. Para ser bem honesto, usou isso pouquíssimas vezes, pois quando utiliza essa habilidade, também recebe a conta dos ônus pessoais. Assim, o roteiro de Dave West o coloca diante de uma situação em que fazer o que é certo supera todas as dificuldades e o vincula a um sacrifício extraordinário.

A maneira com que esse ato de heroísmo é chamado a acontecer é uma bela homenagem aos quadrinhos. Um cientista insatisfeito coloca a cidade de Londres sob pressão quando coloca uma bomba que vitimará milhares, a não ser que o governo lhe pague uma determinada quantia. O que poderia ser um clichê de proporções jurássicas, acaba se transformando em um gancho nostálgico. Os desenhos em preto e branco da artista Marleen Lowe contribuem para esse tom meio antigo, quando os quadrinhos apareceram como uma ponte para imaginação.

Diante do problema, Bobby Doyle não reluta, mas também não sugere uma solução fantástica. Identifica uma maneira de solucionar o problema – mesmo que essa solução não seja das mais brilhantes – e parte para resolvê-lo e salvar a vida das pessoas, que é a única coisa que importa. Em “O Que Aconteceu Ao Homem Mais Rápido do Mundo?” a relação entre poder e responsabilidade tão explorada em heróis como o Homem-Aranha ganha novos contornos através de Dave West e seu personagem tão comum que podia estar ao seu lado agora.

P.S: A edição ainda apresenta alguns bônus, como uma história inédita de Bobby Doyle.

Nota: 9,0

Twitter do autor: http://twitter.com/AccentUK

Textos relacionados no blog:
- Quadrinhos: “Fracasso de Público” – Alex Robinson
- Quadrinhos: “Fracasso de Público – Adeus” – Alex Robinson